Entre o café e o deslumbramento do panorama à minha volta, horas se passaram
O dia fora esplêndido. Embora o termômetro ultrapasse os trinta graus centígrados, nos momentos de amplitude máxima do sol, nada a me preocupar. Muito mais queria ver, muito mais queria saber, mas o tempo é implacável. Não há freios que o faça ir mais devagar.

Como estávamos em pleno dia, embora o crepúsculo já estivesse a mostrar suas tintas no horizonte, imaginei que, naquele domingo, o restaurante do hotel estivesse quase deserto. Estava mesmo, sim, à primeira vista, logo na entrada.
Como fica situado no último pavimento do prédio, e está rodeado por um largo terraço, planejara nele, ao ar livre, saborear meu último jantar piacentino. Frustração. Terraço lotado de pessoas. Jovens e velhos por ali, despojadamente, acomodados em poltronas e sofás, ou em cadeiras e banquetas, ao redor de mesas e mesinhas. Contornei os quatro cantos cardeais que quase tomam conta de um imenso quarteirão e nenhum canto livre eu encontrei.

Foi então que o simpático maître, que já me atendera na véspera, coloca uma mesinha na parte interna, junto à porta. Não demorou muito para eu perceber que era a coisa mais certa. No terraço cigarros eram acesos em moto perpétuo. Dentro, de sua venenosa fumaça, eu estava livre.
Não demorou muito para que todo o salão estivesse repleto de pessoas. Senti que jantar naquele aprazível local era uma das programações dos finais das tardes dos domingos veraneiros das pessoas de Piacenza.

Circulei no seu entorno. Fotografei todo aquele pôr de sol inenarrável. Só procurei meu recanto, para o descanso final do dia, quando nenhum resquício mais, da luz natural, se via no horizonte.
Após o café da manhã seguinte, em plena luz do dia, novamente circulei em torno do fantástico terraço, vazio àquela hora. Pude então vislumbrar, lá do alto, todos os castelos, palácios e igrejas que, na véspera, andando a pé, ao rés do chão, eu vira.

Entre o café e o deslumbramento do panorama à minha volta, horas se passaram. Era o tempo de arrumar minha bagagem, pois já após o meio-dia, tomaria o trem com destino a Verona, a terra de minha Nonna Thereza Gobbi.
Estava preocupada com a antevisão do que me esperava. Eu, com a mala de oito rodas, uma sacola de viagem e a bolsa a tiracolo… Faltariam mãos para subir no vagão que eu deveria tomar na Estação Central de Piacenza. Não era um comboio direto para Verona. Eu deveria desembarcar na gare de Milão, pesquisar em qual binário tomaria o próximo que partisse para o meu destino. E sempre carregando minhas bagagens. Assim divagando tomo o taxi rumo à estação férrea. O motorista imaginou que me levaria ao aeroporto… Para não passar por todos estes dissabores contabilizo a possibilidade de seguir de carro. Pergunto o valor e avalio o tempo que ganharia não fazendo a volta de trem por Milão.

Seguimos, primeiramente, até a margem do rio Pó, para que dele eu me despedisse na região por onde meu Nonno Pedro Gobbi deve ter passado muitas horas de sua juventude. Pela autoestrada fomos deslizando. De vez em quando o motorista ia mais lentamente. Dizia que eram os trechos vistoriados por câmeras e deveria obedecer a velocidade máxima permitida. Muitas praças de pedágio. E uma paisagem incrível.
Aos poucos as grandes montanhas, ao longe, ficavam mais nítidas. Florestas cobertas de ciprestes e pinheiros italianos. Imensas plantações ao longo da rodovia. A colheita do feno em andamento. Aqueles imensos rolos dourados a se acumularem pelos campos. A necessária forragem que alimentaria a criação nos longos meses de frio que se estendem já desde outubro e só findam lá pelo mês de maio.
Muitas vilas e cidades, ao longo da estrada. Muitos sítios e construções variadas. Muitas em pedra. Típicas da região do norte da Itália. E quando elas se adensam, se acumulam, múltiplas rodovias, muitos anéis, muitos viadutos, enroscam-se à nossa frente. Se se errar uma entrada ou uma saída serão inúmeros quilômetros a mais a percorrer.
Estamos na imensa Verona. Primeiramente Verona Sud. Mas nosso destino era Verona Est. Antes das duas horas da tarde eu já me encontrava instalada no hotel. E de pronto saí para as ruas em busca de meu principal ponto de destino, a Porta de San Michelle. Que pela amável recepcionista fiquei sabendo que se chamava Porta Vescovo. E que bem perto do hotel se situava.

Segui a orientação que me foi dada. Caminhando por uma grande avenida, a Corso Venezia, fui me entrosando pelas calçadas, observando as construções, em sua maioria de apenas um pavimento. E eis que, repentinamente, deparo-me com uma placa indicativa. Eu me encontrava em plena San Michelle. Mas como? Assim, de repente, a menos de dois quilômetros do hotel? Mas San Michelle não era uma vila? Distante de Verona? Da outra vez em que lá estivera, vi a Porta que me disseram ser de San Michelle. Pelas poucas horas em que lá permanecera, apenas a vi. Emocionei-me. Imaginei minha Nonna, menina- moça e jovem ainda, por lá passando e retornei para a estação ferroviária.
“Mas a emoção maior foi passar pela Porta de San Michelle, a porta por onde passava o povo da campanha de San Michelle, da campanha onde os Caillotto viviam. A campanha de San Michelle de Verona, onde minha Nonna Thereza nasceu e viveu sua juventude de sonhos.
A Porta de San Michelle, por onde minha Nonna Thereza passou tantas vezes com seu carreto, carregado de produtos do campo, para vender na cidade. Trazendo ovos e leite, manteiga e queijo, frutas e verduras, couro e banha. Mas, trazendo também tecidos de seda. Trazendo também tecidos de lã.
Sim, tecidos de lã, da lã das ovelhas que nos pastos criavam, da lã que enrolavam, da lã que enleavam e em tecidos em seus teares transformavam.
Sim, tecidos de seda, da seda dos bichos-da-seda, que nas frondosas amoreiras cultivavam, da seda que enrolavam e enleavam e em tecidos, em seus teares, transformavam.
A Porta de San Michelle, por onde da cidade saiam portando consigo o que não produziam e do que necessitavam para o seu dia a dia.
A Porta de San Michelle, de onde Nonna Thereza saiu um dia, muito jovem ainda, com seus poucos pertences e seu já grande conhecimento da vida, rumo à América, à nossa América.
A Porta de San Michelle, por onde Thereza Caillotto Castagna e depois Gobbi, saiu com as preciosas joias que lhe couberam como herança de família. As preciosas joias de família, das quais ela se desprendeu, para que em nossa terra fosse erguido um hospital.
Nonna Thereza, que veio de Verona, e que não apenas de suas preciosas joias de família se desprendeu. Desprendeu-se, também, de milhares de horas de sua vida, num imenso trabalho, para ver concluído e inaugurado o Hospital Santa Cruz de Canoinhas.
Nonna Thereza, que não aceitou ter seu nome imortalizado em uma placa no hospital que idealizou e ajudou a construir. Não aceitou que o nome do hospital fosse Thereza Gobbi, como pedia o povo de nossa terra há mais de oitenta anos.
Nonna Thereza, que não aceitou ver seu nome, ainda em vida, em uma praça da cidade de Canoinhas, como propusera o senhor Alinor Vieira Corte, prefeito de Canoinhas, naquela época.
Nonna Thereza, que nunca mais foi lembrada para ter seu nome consagrado e perpetuado em alguma via pública de nossa cidade.
Pela Porta de San Michelle, em Verona, passou um dia, pela última vez, uma jovem sonhadora de nome Thereza Caillotto Castagna, depois Gobbi, que semeou e plantou um hospital na Terra de Santa Cruz de Canoinhas” *.
Continuei a percorrer a grande e larga avenida. Até que, finalmente, vislumbro, ao longe, uma construção que parecia ser a parte de trás de uma igreja. Lentamente, com meus passos lerdos, dela eu me aproximo. Contorno-a. É a Igreja de San Michelle Archangelo. Adentro-a. Imaginei a família de minha Nonna Thereza lá fazendo as suas preces em cada manhã de domingo. Os dias dos batizados… Os dias dos casamentos…

Hoje a Vila de San Michelle Archangelo, como os seus moradores fazem questão de frisar, é um populoso e belo bairro de Verona, agregado à cidade já desde muitos anos.
Contaram-me que, toda aquela extensão era um vasto campo, uma vasta planície. Servira de acampamento para a cavalaria de Napoleão Bonaparte, em sua tentativa de dominar a Itália. Lá os cavalos tinham o pasto mais verde e fresco de toda a campanha do famoso conquistador corso, segundo lenda que corre na região.
Muitas construções fazem parte do conjunto da Paróquia de San Michelle Archangelo. Entre elas um colégio, que em tempos passados, foi um internato também.
Fora da Igreja uma arborizada praça, com muitos bancos. Onde pude ficar, por longo tempo, a descansar da longa caminhada. Rodeando a igreja, consegui encontrar a sua entrada. Um acervo de pinturas maravilhosas, como as que se encontram nas demais igrejas da Itália. Pintores geniais por lá deixaram suas tintas em exuberantes afrescos. Não só pintores. Também as esculturas sacras, carregadas de detalhes impressionantes.
Depois de me saciar em ver estas belezas acreditei estar em condições de encetar minha longa viagem de retorno ao hotel. A sola dos pés ardendo. Tentei, em vão localizar um táxi. Pensando que, pela avenida passasse algum vazio, em baixa velocidade, tomei o rumo do hotel. Quando dei por mim, diante de suas portas eu já me encontrava.
*Sobre esta passagem eu falo em meu livro “A Europa pelo meu olhar”.