Adair Dittrich resgata mais um poema do passado
O fundo do baú!
Ah! Os fundos dos baús onde sempre encontramos retalhos esparsos de pequenos pedaços de papel, repletos de rabiscos que definiam os momentos… Papéis de um tempo de nostalgia em que palavras eram jogadas ao som e ao ritmo de melodias da época da “fossa nova” …
Palavras que ainda tangem sinos e rompem cordames em corações sensíveis nos tumultuados e diferentes dias que céleres correm agora.
Mas, o meu horizonte é amplo. E nele percebo lágrimas de saudade que ainda rolam face abaixo ao ler pedaços dilacerados de amor jogados em papéis. Ainda sinto e ouço vozes entrecortadas, embargadas, sufocando soluços ao contar-me de amores rompidos. Pessoas sensíveis e emotivas existem. E choram por um amor que feneceu nas quebradas do tempo.
Para estes seres cheios de sentimento e de profundas e belas emoções eu desenterro mais estes “Desabafos perdidos no tempo”.
Um recado sem lágrimas
No tempo em que gaivotas voavam mais brancas e mais transparentes em nosso mundo interior, mostrando-nos o ocaso e mostrando-nos a aurora, nós também conseguíamos transpor alturas, alcançando espaços plenos de luminosidade e céus estonteantemente azuis.
Planávamos os nossos voos para muito além da chuva e da neblina e deixávamos aquele tolo mundo lá de baixo corroendo-se na inveja, na ira, no medo e no tédio, no tédio principalmente…
… depois… depois eu fui sendo moldada com ásperas palavras, com palavras cruéis e tive medo. Sim, eu tive medo, não de sucumbir, simplesmente, mas de voltar a arrastar-me no solo, tendo na vida a finalidade única de procurar alimento. Alimento para o corpo, apenas…
… eu não queria relembrar este tempo de trevas…
… dias terríveis, dias de caos, de uma dor sempre mais imensa, somando-se a outras dores maiores.
E eu tinha de ser apoio, enquanto fraquejava.
E o meu Eu interior caminhava sozinho no espaço, vagueava sozinho no além, buscando apoio em fios invisíveis, para continuar, com a face contorcida em um sorriso de apoio, forçando os meus alicerces para que continuassem sendo o apoio de outrem, o apoio… apoio que em vão eu esperava.
Amigos? … esvaíram-se na neblina…
As horas, os dias corriam… e no brilho de meus olhos, outros olhos esperavam por uma resposta. Por uma resposta que lhes levasse paz, que lhes mostrasse o amor, que lhes inspirasse carinho, conforto, que lhes trouxesse a solução para tantos problemas seus…
… e meus olhos estavam mortos. Um espantalho que habitou meu interior por muitos dias, por muitas horas, por um tempo interminável, não conseguia nem mais um sorriso triste…
… eu confiara na amizade de um amigo que me escrevera um dia jamais abandonar essa nossa espiritual amizade…
… e eu precisei desse apoio, eu precisei desse amigo, céus o quanto eu precisei destas mãos amigas em meus curvados ombros…
E um dia ele veio, um único dia, uma única vez, por algumas horas apenas, premido por fatos dolorosos demais, arrancado de dentro de seu mundo, totalmente novo, por meu choro convulso, por um trapo derrotado que continuava na intensa necessidade de continuar sendo apoio.
Foram horas de companhia forçada, eu sei… obrigada por ter sido esta companhia… que, mesmo sendo forçada valeu como algo espontâneo, como o brilho de um retorno àqueles voos para além da chuva, para céus estonteantes de claridade… e pensei que seríamos outra vez as gaivotas que não conheciam o medo, a ira, a covardia e o tédio.
Agora… agora eu não sei em que espaços estou flanando…
Ω
Hoje eu procurei inutilmente
na cadência milagrosa,
um sussurro de amor.
Eu procurei pelos espaços tua voz
pelas campinas teu sorriso
e em todo o canto os olhos teus.
Hoje eu tentei imbuir-me nas lembranças
mergulhar na saudade mais remota.
Vã tentativa de palpar teu vulto
abstrato vulto
envolto em névoas na distância.
Inundei-me nas imagens
e vaguei entre esferas embaçadas
nas mais desesperadas buscas
de um consolo mais palpável.
E tudo escorreu por entre os dedos
fugindo como espumas diluídas
diluindo como espumas fugidias.
Escrito em 22/05/1974