…E vomitou seu desespero!

Leia a primeira parte do novo conto de Adair Dittrich                                                                               

 (Parte I)

Um fim de tarde, quase um ano depois, guardando no ar o peso de um grito que tenta explodir. Um fim de tarde, guardando consigo a incógnita, a expectativa de um punhado de amigos.

 

Lá, sentados, na sala de decisões, circunspectos, tranquilos, heroicos, abnegados, os donos de uma situação. Lá, sentados, tranquilos, resolvendo, como num julgamento imortal, da vida e do destino dos outros.

 

 

Sua presença aqui e agora não era aquela presença regular, sempre pedida e quase nunca atendida para soluções de importantes problemas da casa que dirigem. Não são donos desta Casa, mas julgam-se os donos da vida e do destino dos que nela trabalham.

 

 

Dirigentes por um momento, por uma fase, como haviam sido antes ou poderia ser no amanhã que viria. Hoje são eles os que se sentem na obrigação de zelar por essa moral tão pouco zelada entre as quatro paredes de suas consciências.

 

 

Quase um ano depois, num fim de tarde angustiado, com pesadas e grossas nuvens, os amigos sufocando o grito na garganta…

 

 

A reunião terminara e ninguém a saber das resoluções tomadas.

 

 

O dia amanhecera sem chuvas. À noite até houvera luar. Um dia cálido, inexpressivo e quieto. Brusco e branco, com poucos, muito poucos pedaços de azul no céu.

 

 

Quase imperceptível fora a chuva que caíra durante toda a noite fazendo com que todos chegassem atrasados por culpa das ruas e estradas barrentas. Porque da chuva só sobrara a lama dos caminhos.

 

 

O veredicto, ainda não conhecido, deixava no ar um estranho poder envolvente a sufocar tudo em torno.

 

 

A pequena sala, sem janelas, situada no interior da grande construção, às escuras, foi o motivo para quebrar o gelo com um “Boa Noite” em plena manhã. Um papo esticado, sem graça, prolongava-se, à espera que alguém trocasse o fusível queimado.

 

 

Um atraso prolongado e a conversa na salinha girando em torno de tudo, volteando, volteando, para não cair no assunto que estragara muitas noites, muitos dias e muitas horas de muitos. Re-solveram pedir um cafezinho. A luz retornara. O trabalho todo, em todas as sessões, à espera.

 

O encontro, no posto de enfermagem, repentino, inesperado, com o rapaz emagrecido e nervoso, fê-la perder a voz. E a pergunta veio apenas com um gesto de mãos, o polegar dirigido aos céus. E a resposta voltou, de olhos bem abertos, silenciosa, também, num gesto de mãos, polegar para o chão…

 

 

Num quase suspiro apenas conseguiu falar, num balbucio:

 

 

– Receberás a conta de imediato e eu tenho trinta dias para procurar outro emprego.

 

 

 

O pasmo sentou-se nas banquetas do posto e infiltrou-se pelas papeletas, prontuários, paredes… A amiga não queria demonstrar fraqueza em meio a tantos. Não conseguiu. Lágrimas rolaram. E o moço, emagrecido, nervoso, com seu cabelo liso e preto caído à testa, também mostrou um olhar brilhante, molhado, não conseguindo nem mais um sorriso triste.

 

 

A reunião fora rápida. Com decisão inabalável. Em nome da decência e da moral. Para que todos aprendessem a lição. Para que o nome do Hospital não mais fosse manchado, maculado.

 

Já nem lembrava há quanto tempo ali trabalhava. Era garoto quando começara. O que não interessava para os donos do agora.

 

Ninguém notava mais o seu sorriso antigo. A preocupação tomara conta de sua alma. Ficava a espalhar pelos corredores o seu eu retalhado. Um ser automático, com rugas precoces, denunciando ruína. Caminhava num imenso vazio. Seus pés nem sentiam o solo. Não conseguia entender este caos. Seria sua mente pequena demais para entender a incompreensão?

 

Revoltado? Sim. Com tudo, com todos e até consigo mesmo.

 

Culpado? Sentia-se culpado, sim. Mas Aquele que está lá no Alto não falou aos algozes de Madalena “Quem for sem pecado que atire a primeira pedra”?

 

Estava encurralado. Amava-a muito e sentia-se impotente para enfrentar a vida. Sua mente dançava. Não pensara em casar tão cedo. Tanta coisa a fazer ainda. Estudos a completar.

 

Sabia que trabalhar em um pequeno hospital de uma pequena cidade do interior não lhe traria grandes chances na vida. Arraigou-se, no entanto, ali. Não conseguia desprender-se destes elos, até misteriosos, que o prendiam àquela Casa.

 

 

Vira o caos tentando destruir seu Hospital. Mas não correu amedrontado como tantos outros. Tantos, como ratos que abandonam um navio a naufragar. Ali permaneceu enquanto durou a crise. A crise que fez com que outros e outras partissem em busca de novos empregos, novas chances em hospitais maiores de maiores cidades. Tinha esperança de que, um dia, a comunidade acordasse e se lembrasse que reerguer o Hospital era preciso, pois, era o único em um pobre e imenso território.

 

 

Sentia-se, como sempre, fraco e pequeno para fazer alguma coisa. O tempo encarregara-se, porém, de mostrar a todos que esta Casa resistiria. Vieram pessoas dispostas a lutar. A crise fora difícil. A luta, árdua. Mas tudo fora superado. Aqueles corredores, por onde circulava agora, como um espectro, estavam bonitos, limpos, arejados. Quantos meses de vencimentos atrasados! Tivera fé. Crescera com o Hospital.

 

 

Agora o desligavam. Mudaram os homens que haviam reerguido a Casa. Os novos dirigentes encontraram o plano pronto. E executado. Encontraram um bom administrador que colocara em seus ombros a árdua tarefa de sanar a podridão geral amontoada ao longo do caminho, no correr dos tempos. E os novos chefes eram agora os seus algozes. Dirigentes-algozes que imputavam ser o erro de Gabriel grave demais para ser deixado em branco e o mandavam embora. E nada atingia a Gabriel, tão profundamente, como o absurdo de separar-se de seu amado Hospital.

 

 

Amigos chamaram-no para trabalhar na companhia americana que recentemente se instalara na região. A família queria que fizesse concurso para o Banco do Brasil. Nem foi e nem fez. Eram profundos os elos que o atavam à sua profissão, à sua casa. Era ele quem já substituía o Administrador do Hospital. Quantas foram as vezes em que ficou com as rédeas da entidade à mão, tomando decisões importantes. Agora, simples e rudemente o mandavam embora. Como se fora um garoto malandro expulso após a primeira peraltice. Seu orgulho o mandava sair de imediato. Foi o que decidira com Márcia. Não conseguiu. Suas raízes ali eram fundas demais e não tinha a coragem necessária para arrancá-las de um golpe só.

(Continua)

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