… E vomitou seu desespero!

Leia a terceira e última parte do conto de Adair Dittrich                                                              

 

Continuaram num idílio sem fim. Um fim de semana inesquecível em uma praia. Onde o devaneio fora total. Sua memória trazia ainda quente e atual os dias azuis em que se extasiavam com o vento embalando as palmeiras. Via, através de tudo o que o cercava, como se nada mais existisse, o mundo deles, suas vozes, a presença dela. Nem saberia como descrever o que tinham sido aqueles momentos todos. Relembrava muitas e muitas vezes e, ao relembrá-los, vivia tudo de novo. O olhar dela em seus olhos. Ela em seus braços. Seus pés tocando-se na areia quente. E abraçados foram ao refúgio escolhido onde a sentiu sua. E a beijou com ternura. Mansamente. Suavemente. Selvagemente. A sua ânsia de ser e de estarem juntos. Não! Ele nem conseguia mais pensar nesses momentos. Que foram lindos. E como eram felizes!

 

Quando Márcia veio dizer adeus para ir embora, Gabriel queria levá-la para assumir o novo emprego. Disse a ele que preferiria ir no ônibus da madrugada seguinte para ver como tudo seria, questão de horários, plantões, alojamento, documentação, enfim tudo o que precisa ser conferido antes de se começar em algo novo.

 

– Amanhã à noite já estarei de volta e então nos veremos.

 

Beijou-o com todo o carinho e foi para casa. Que era a uma quadra dali.

 

Gabriel queria ser forte. Precisava ser forte. Estava até sorridente. Os colegas de trabalho haviam feito um abaixo-assinado encaminhado à diretoria da instituição solicitando, com ênfase, o retorno dele ao serviço. Seus colegas, seus amigos, não o abandonariam.

 

Tão emocionado ficara com este gesto de solidariedade, de amizade que nem conseguiu mais continuar assistindo as aulas naquela noite. Precisava repartir com Márcia esta sua alegria interior que viera amenizar o pesadelo e o remorso.

 

Ao chegar na esquina da casa dela vislumbrou um carro há muito conhecido e que por muitas vezes já vira rondando por ali. Até conhecia o dono. Não! Pressentimento bobo! Não, não agora! Apressou o passo e rápido chegou à casa de Márcia. Bateu. Esperou. Ouviu vozes. Perguntou por ela. Não o deixaram entrar. Ali, no beiral da porta teve que ouvir um rosário de impropérios. Os pais dela destilando um veneno imenso em cima dele, culpando-o por todas as desgraças da filha. E disseram que ela tinha ido, rapidamente, ao hospital, a fim de dar um telefonema e pegar alguns papéis que faltaram para o novo emprego.

 

Pegar papéis? Mas tudo tinha sido acertado com o administrador. Ele mesmo estava junto e vira que tudo estava certo…

 

Telefonar? Para mim, não. Ela sabia que não me chamariam, durante as aulas para atender ao telefone. E mesmo a Faculdade sendo tão perto era mais fácil ir até lá e aguardar o intervalo das aulas, como tantas vezes fizera.

 

Um vazio no estômago e um pressentimento angustiante fê-lo sair correndo. Ainda pode vê-la, à luz do luar, embarcando naquele carro. Foi atrás. Em pânico. Em tumulto. Seguindo-o sempre viu que parava na casa de uns engenheiros que trabalhavam naquela companhia americana que recentemente se estabelecera na região. E viu, atônito, um homem e uma mulher, do carro descendo e, abraçados, em carícias frenéticas, dirigirem-se para o interior da casa.

 

Gelou inteirinho. Pernas cambaleantes. Relâmpagos em sua cabeça. Tumulto de ideias. Poderia estar enganado. Não, não era ela! Nem fora ao hospital ver se estava mesmo lá. Ah! Seria o ciúme gerando o engano? Não! Não poderia ser ela! Não depois de todo o acerto da véspera… Mas… e se fosse? Era agora um joão-ninguém, sem emprego. Matrícula na faculdade que deveria ser trancada… Não, Deus!!! Não poderia ser ela!!!

 

Foi até o hospital. Criou coragem. Disfarçando a trêmula voz perguntou por ela. No sorriso debochado que ele percebera, a enfermeira chefe do turno da noite, afirmou que ninguém a vira.

 

– Mas em casa não está. Seus pais disseram que tinha vindo até aqui… para telefonar.

 

Agigantou-se o desespero. Nem soube como chegou até a secretaria onde a sua velha amiga de sempre ainda trabalhava.

 

– Márcia está aí contigo?

 

– Não, aqui ela não esteve. Pensei que estivesse contigo.

 

Não… o último não da noite. Com ele, o quase desespero. Pavor. Horror. Náuseas. Estômago roendo. Coração acelerado. Retornou, sob seus passos, até a casa onde julgou tê-la visto pela última vez.

 

O mesmo carro no abrigo da entrada. E a urgência de romper todas as dúvidas… E a desculpa? Como entrar ali sem causar estranhez? Conseguiu uma naturalidade comprada na última esquina ao preço de um medo medonho contido. Vestiu-se com ela. Era o desconforto da roupa de inverno em pleno verão. Sufocante.

 

Entraria? A casa era a muralha. Erguida diante de sua angústia. O desafio. Desafio… também ao medo. Aceitou-o. Entrou. A música indicando o caminho, o rumo. Para um lugar qualquer dentro do espaço frio. A casa era um motivo a mais para a sua solidão. Solidão que só fazia o pressentimento aumentar. Tudo se avolumando, antecipando a dor. E ela veio. Assim… com a música num crescendo a cada passo. Uma porta não travada. Um instante doloroso e a visão que se fez caos. Ela, ali. O gelo derretendo em dois copos esquecidos. Ela ali. Cinzas dizendo do cigarro perdido na insignificância de todas as coisas, porque só ela, ali, era o tudo. Ah! A dor. Ela veio. Assim… com seus olhos surpresos na roupa dela inteiros. A roupa dela… reconheceu-a… peça por peça, pelos móveis, pelo chão.

 

E ela veio. A dor. Assim… Com o amor mutilado, em extremo abandono… (o amor deles dois) o amor procurado na urgência da hora tardia… (o amor deles dois) jogado na cama de um outro qualquer… com ela ali, desnuda, num beijo gemente, frenético, angustiado…

 

Chegou, a dor. Veio, sim. Reconheceu-a, também.

 

Vomitou seu desespero no tapete da sala.

 

E saiu pela noite encharcada em luar.

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