Em agonia… um último aviso III

… e o vermelho do sangue no cáqui da farda (Final)                                                                             

 

 

E o seu fácil sorriso a escoar-se pelos olhos e a sua face tranquila aliviaram tensões. Jogou-se nos braços daquela que era sua mãe. Sua mãe desde o trágico dia, em que a canoa, em que estavam seus pais, emborcara no rio caudaloso, naquela tempestade que chegara em surdina.

 

A ninguém ousaria contar da viagem feita aos espaços. Julgá-lo-iam um visionário, para não afirmar que estaria endoidecido.

 

Apenas contou que encontrara velhos livros, e os estivera lendo. Que depois caíra em sono profundo. E sonhara que era um policial.

 

E como era tempo quase de ele se apresentar ao serviço militar, pensou até que poderia fazê-lo como um policial militar. Talvez fosse destacado para trabalhar ali mesmo junto, aos seus. Suas palavras foram sendo despejadas aos borbotões, e viu lágrimas, antecipadas, nos olhos das pessoas que eram o seu mundo.

 

Continuou a procurar livros e mais livros para ler e estudar e muito aprendeu. E descobriu fabulosos mundos.

 

Na escola que se localizava na fazenda onde morava encontrou uma fada ensinando crianças a ler, a escrever e a contar. Uma fada que viera de outras paragens. Imaginava estar ouvindo a um anjo quando a ouvia. E ela foi lhe contando da luta que enfrentara sozinha para estudar em cidade distante. E agora estava ali, escondida do mundo, jogando aos pequenos da terra, as pérolas que havia encontrado no longo caminhar pelos caminhos do mundo.

 

Pareciam os dois já velhos amigos de muitas andanças.

 

Ambos queriam mostrar a luz aos que viviam nas veredas escuras da vida. Cada qual em seu canto, ensinando o amor. E assim ele foi, sempre em frente, absorvendo o saber para ser.

 

E um dia partiu em busca da meta sonhada. Deixou-a com os negros olhos muito grandes brilhando com as lágrimas que, como diamantes, desciam por suas faces. Ela sabia que aquele menino, quase imberbe menino, não buscava qualquer caminho. Buscava O caminho. Tinham quase a mesma idade e ele lhe parecia imenso.

 

Ela se lembrava ainda – e como – quando, no último adeus, ele lhe afagara os longos e negros cabelos e lhe dissera com a voz amargurada:

 

“Meu anjo, eu logo virei buscar-te. Preciso de ti, agora, como os vagalumes da escuridão, para brilhar…”

 

E partiu. Cartas de entusiasmo crescente detalhavam tudo o que estava fazendo. Contou que se destacara na cavalaria, pelo treino que tinha desde bem pequeno. E que o apelidaram de gringo…. fazendo-a rir muito, pois era assim que o chamava também.

 

Levantavam muito cedo, no quartel. O ritmo era duro. Exercícios. Aprendizado teórico e prático. Aulas, muitas aulas. À noite, quando não estava de plantão, frequentava o ginásio. Um dia seria oficial.

 

Doutra vez, escrevera-lhe que o treinamento tinha sido no mato, numa simulação de luta de guerrilhas. Ele conseguira, com seu velho treino de rastreador, pegar desprevenido o pelotão “inimigo”, prendendo a todos. Foi muito elogiado e citado em boletim. Conseguia encontrar vestígios do grupo oponente até na relvinha amassada. Estava mais entusiasmado do que jamais havia sonhado, mais entusiasmado do que algum dia pudesse sequer supor. E findava a carta “quando eu tiver terminado o meu tempo irei buscar-te e poderás então comigo continuar ao encontro de teu maior ideal”.

 

A última vez que lhe escreveu falava que iria partir para uma serra distante onde caíra uma aeronave com colegas seus que davam caça a marginais. Era um local inóspito, de difícil acesso e o seu conhecimento, como exímio rastreador, fez dele o indicado para tão difícil missão, juntamente com uma equipe de escol.

 

Dizia-lhe que aprendera com fatos a importância da salvaguarda dos direitos do Homem. E que eles ali estavam para que a comunidade trabalhasse tranquila, para que a comunidade repousasse em paz.

 

Numa tarde de céu muito azul ela teve a impressão de ouvir um coro de anjos em longínquas alturas e sorriu a imaginar que o seu quase imberbe menino era a própria figura de um anjo.

 

Voltou de sua escola, na hora do crepúsculo, e ficou a contemplar, no regato cheio de seixos reluzentes, todas aquelas nuances de um sol que se ia de uma forma como ela jamais vira. E via o rosto do seu menino espelhado nas águas. Era, contornando o mesmo regato, que, muitas vezes, seguiam os dois de mãos dadas, descobrindo, em cada entardecer, diferentes imagens e cores.

 

Seguia, vagarosamente, pelas trilhas das imagens que lhe pareciam tão próximas. Lembrou-se, então, daquele sonho que uma vez ele lhe contara. O sonho onde vira um mundo onde o homem da lei estaria na consciência de cada indivíduo. E nunca a imagem dele lhe pareceu tão real e tão próxima.

 

Parecia sentir suas mãos entrelaçadas, as mãos dele afagando seus negros e longos cabelos e o brilho de suas lágrimas confundiram-se com o cintilar das primeiras estrelas que já derramavam seus pingos de ouro pelo céu.

 

Seus passos a levaram, inconscientemente, para a casa grande. E já na entrada ela viu… suado e ofegante… como se tivesse corrido mil milhas por hora… o negro cavalo de um sitiante vizinho.

 

Era um vizinho que sempre chegava até ali para uma roda de chimarrão amigo, para um papo informal. Sempre trazia notícias do mundo. Notícias que recebia através de seu possante aparelho de radioamador junto do qual passava horas de esquecimento total. Recebia e ajudava a transmitir notícias. Servia de ponte entre aquele rincão escondido e o resto do mundo.

 

Mais que um pressentimento, a certeza. O negro cavalo ofegante e suarento… não era hora do habitual chimarrão amigo… jamais alguém arrancaria aquele homem de suas antenas voltadas para o mundo àquela hora… não se não fora a urgência de trágicas notícias.

 

A mente dela era um fogo de espanto. Um suor gelado inundou-a inteirinha… Viu nas faces de todos a triste notícia fatal. E antes que o mundo inteirinho rodasse em sua volta conseguiu sussurrar num murmúrio dorido….

 

 – Ele sempre foi exemplo de amor e nobreza… agora os anjos vieram buscá-lo… e ele está naquele mundo de amor com o qual sempre sonhou.

 

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