Em busca do tempo vivido

Escritor resenha o livro da colunista do JMais, Adair Dittrich                                                             

 

Enéas Athanázio

 

Não são muitos os memorialistas nas letras catarinenses. É um gênero literário em que poucos se destacaram no país, lembrando-se sempre os casos de Humberto de Campos, Gilberto Amado e Pedro Nava como os mais expressivos. Surge agora, entre nós, um livro marcante e cuja leitura me comoveu porque retrata com fidelidade a cidade de Canoinhas e, em especial, o distrito de Marcílio Dias, terra natal da autora. Há bons momentos de lirismo e poesia, outros tantos com mergulhos na intimidade subjetiva da autora e retratos enternecedores de figuras que marcaram sua trajetória de vida. As reminiscências, em forma de crônicas, fogem sempre das tão frequentes poses encontradiças em obras do gênero. O estilo é leve, a linguagem é correta e desenvolta e a autora se revela arguta observadora do meio e dos fatos, condição essencial ao cronista. Para quem residiu em Canoinhas, como eu, o livro é uma rara oportunidade de reencontro com a cidade e sua gente.

 

Refiro-me a “O Meu Lugar”, de autoria de Adair Dittrich (UNIUV – União da Vitória – 2016). Nascida em Marcílio Dias e médica de profissão, a autora é testemunha presencial de considerável período da história local em contato direto com o povo na sua lida cotidiana. Começa relembrando a instalação da família naquele distrito na luta árdua para a construção de um hotel e restaurante à margem da estrada de ferro, destacando a atividade de seus pais e a fama dos pastéis preparados pela mãe, sempre procurados pelos viajantes e ferroviários. Lembra, de passagem, a cerveja “Nó de Pinho” e as gasosas de “seu” Loefler, e que ainda conheci. Marcílio Dias se ligava a Canoinhas através de um ramal percorrido pelo Trenzinho, distinguindo-se do Trem Grande, aquele que fazia o trajeto entre Porto União e Mafra. Ali ela viveu inesquecíveis momentos de uma infância livre e feliz, relembrados com justificada saudade.

 

São tantas as lembranças evocadas que não é fácil destacar algumas nos limites de um artigo. No conjunto, elas revelam como são lentos e tortuosos os caminhos para a construção de uma cidade e os esforços de seus habitantes, ainda mais em uma região do Estado que sempre padeceu do mais completo abandono. Entre tantos acontecimentos, ressalta a memorialista a luta para a construção do hospital, a ampliação do colégio, a criação da fábrica para produzir cafeína, o Salão Metzger e suas festas e o chamado Campo de Trigo. E surgem retratos de épocas que parecem longínquas mas que, para nossa geração, são de ontem. Os carros movidos a gasogênio em face da escassez de gasolina, o estafeta que transportava de carroça as malas do correio, os sons sinistros dos machados e das serras na devastação da mata verde, os festejos de Natal, da Semana Santa e as domingueiras em que se espalhava serragem no soalho, a confraternização com amigas e colegas, a lembrança imorredoura dos dias do internato, as mestras que deixaram marcas, as peraltices, a rotina de uma vida disciplinada. Também não faltam os amores e as desilusões, os sonhos e as decepções inevitáveis na caminhada terrena, mas tudo contribuindo para a formação do ser humano e profissional em que se tornou.

 

Mas nem sempre foi um mar de rosas. Momentos chocantes deixaram marcas indeléveis. Assim foi quando fecharam a Escola Alemã, no correr da Guerra Mundial, e a prisão de conhecidos que falavam alemão. Num desabafo repleto de amarga surpresa, a menina confessou compungida: “E então eu entendi que o mundo não era feito de irmãos.” Tempos depois, em outra fase, aconteceu o cerco do distrito de Marcílio Dias. Com armas nas mãos, em aparatosa operação militar, varejaram a casa dos pais da autora em busca do “perigoso comunista”, seu irmão, Aldo Pedro Dittrich, num episódio deprimente e desnecessário. Meu contemporâneo de Faculdade, Aldo foi um homem de extraordinária coragem, firme nas suas convicções inabaláveis e, mais tarde, ainda que padecendo os efeitos das torturas, exerceu a advocacia na comarca com dedicação e dignidade. “Foi um dia inútil – escreveu a autora -, de uma imobilização inútil, por causa de uma inútil denúncia de algum inútil, onde muitos pagaram um preço de algo que nunca haviam ficado devendo.”

 

Muito bem fez Adair ao lançar no papel suas lembranças. Elas ficarão para sempre como um documento vivo das lutas e vitórias de seu povo. “A narrativa escrita – afirmou a escritora Zenilda Lins – pereniza a memória e materializa as observações. De que outra forma é possível compor as imagens, reter as cores, descrever as emoções? O livro é mágico: cristaliza as memórias perecíveis, evitando que se apaguem e se percam no nevoeiro do tempo e no emaranhado de novas experiências.”

 

Minhas saudações a Adair, uma escritora que já veio feita da experiência jornalística e que ingressa no mundo literário com passo firme. Ao contrário de Proust, que buscava o tempo perdido, ela recupera um tempo muito bem vivido.

 

Escrito por Enéas Athanázio,  | [email protected]

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