Leia coluna de Adair Dittrich sobre o dia do professor
Mas, para que eu lá chegasse com algo mais que as minhas meras palavras, muitas madrugadas me encontraram com livros, transparências e coloridas canetinhas nas mãos.
Necessário era copiar desenhos além de escrever, em letras desenhadas, em finos papéis transparentes. Para uma tela as imagens seriam transferidas através de um retroprojetor.
Era este aparelho o magnífico auxiliar que dava um colorido ênfase às aulas, palestras e apresentações.
No entanto, para preencher de maneira correta, colorida e legível todas as falhas de minha apresentação, muitas horas debruçada em minha mesa, pelas madrugadas, eu passei.
Apenas uma aula…
Sim, foi apenas uma aula… faz tanto tempo… Posso não ter gravado em minha mente o rosto das pessoas que lá se encontravam. Lembro-me, porém, de muitos olhos voltados para mim. Olhos ávidos que queriam algo de novo aprender. Para em nova vida, em novo mundo, em nova profissão iniciar um novo caminho.
Faz muito tempo já. Recordo que fazia muito frio. Que chovia sem parar. Aquela monótona e incessante chuva de inverno. Do inverno de nosso planalto.
Foi apenas uma aula…
Mas, não me lembro se ela me tomou um dia inteiro. Ou se se estendeu por mais de um dia a fim de transmitir àquelas pessoas o todo e o tudo para que de lá saíssem levando anotados em seus neurônios apenas uns princípios básicos do muito que necessitariam na profissão que estavam abraçando.
Eu fora convidada para discorrer e explanar sobre um tema que me dizia respeito até demais. Eu fora convidada para falar sobre “Respiração” e “Ressuscitação Cardiopulmonar.”
Mas, qual seria o nível de escolaridade das pessoas a quem eu me dirigiria? Como falar sobre a Respiração e a Ressuscitação sem primeiramente mostrar o básico?
Então eu comecei por copiar desenhos do esqueleto humano. Era só colocar as folhas transparentes sobre as páginas de meus compêndios, e, com as canetinhas coloridas nelas delinear os traços todos. Muito fácil para quem carrega consigo o dom de bem desenhar. Não é o meu caso. Levava minutos intermináveis para que a cópia ficasse perfeita. Então, primeiramente, copiava o desenho de um corpo inteiro, especificando todos os ossos. Depois, em outra folha, apenas o arcabouço costal. De frente, de perfil e de costas. Em repouso, em inspiração e em expiração.
Repetia o mesmo com o sistema muscular. De corpo inteiro e depois especificando os músculos responsáveis pelos movimentos respiratórios. Os principais e os acessórios.
Caprichei nas transparências que mostravam a localização de todos os órgãos e vísceras de nosso organismo. E depois, em especial, os pulmões e o coração na cavidade torácica. E todo o aparelho respiratório. Toda a árvore respiratória.
De muitos compêndios as figuras eu fui delineando, com as coloridas canetinhas específicas para retroprojetor, em dezenas de transparências que iam se amontoando noite após noite. Eu as copiava de livros de anatomia, de livros de fisiologia e de compêndios vários de Anestesiologia.
Não eram, no entanto, apenas desenhos que eu me propunha a mostrar. Folhas e folhas transparentes com muitos nomes e muitas palavras eu preenchi. Com escalas e gráficos, com esquemas e chaves. Sempre tudo em letras grandes e coloridas. E o trabalho que me deu para lá não inserir minhas ilegíveis garatujas… Foram horas para tudo desenhar em uma caligrafia que lida pudesse ser.
Fiquei feliz em ter conseguido terminar este trabalho antes que o dia marcado para a minha aula chegasse.
Era apenas uma aula…
Que foi ministrada em um apertado porão, quase nada ventilado e uma iluminação muito aquém do desejado. As primeiras horas daquela manhã até que correram rápidas e eu notara o envolvimento de todos neste intrincado novo mundo de nosso organismo.
Além de todas as folhas carregadas de linhas e desenhos eu levara comigo uma parafernália de materiais e equipamentos usados na prática da anestesiologia para uma melhor demonstração prática. Que precisei utilizar já após o primeiro quarto de hora daquela tarde. Porque olhos se fechavam e bocas se abriam em contínuo bocejar.
Foi então que todos foram apresentados ao laringoscópio, às cânulas de intubação endotraqueal, aos respiradores automáticos e manuais, ao Ambu e a outras filigranas necessárias para uma reanimação cardiorrespiratória.
Só após o lanche da tarde é que conseguimos retornar à parte teórica, continuando com a projeção de minhas amadas transparências.
Muitas foram as noites e as madrugadas em que, por inúmeras horas de dedicação, eu passei a preparar o que falei e demonstrei àqueles rapazes no tempo em que com eles convivi. Neste ínterim o meu serviço ficara de lado…
Mas, era apenas uma aula…
Na qual eu me envolvi por inteiro. Estava realizada fazendo algo de que tanto gostava. Falando sobre aquilo que era o meu mundo. Transmitindo para outrem um pouco dos conhecimentos que na vida adquirira. Naquelas horas todas eu extravasara o que eu sabia, o que eu havia estudado, o que eu havia aprendido.
Mas, foi apenas uma aula…
Que pouco ou nada deve ter significado. Porque jamais eu recebi alguma notícia de que algum aproveitamento houve. Também não sei nem em que dia ou em que ano foi. Porque eu não tenho comigo nada que comprove aquelas horas todas lá passadas em intenso trabalho, quando e onde eu dei o todo de mim.
Eu apenas queria saber se aqueles rapazes que depois formaram a primeira turma do corpo de bombeiros de nossa cidade aproveitaram alguma coisa do que eu lhes falei e mostrei naquelas gélidas e molhadas horas em que juntos estivemos.
Nunca fiquei sabendo.
É, foi apenas uma aula… perdida na desmemória dos tempos.
Apenas uma aula…