Canoinhas teve maior número de mortes, com 138 vítimas; curiosamente maior parte vivia no interior
Movido pela curiosidade inerente ao historiador, Fernando Tokarski (foto) se debruçou nas últimas semanas sobre atestados de óbitos registrados em cidades de toda a região de Canoinhas a fim de resgatar de que forma a região foi atingida pela pandemia de gripe espanhola entre 1918 e 1919. Esta pandemia serve de referência por ter peculiaridades muito semelhantes com a atual pandemia de coronavírus.
As importantes descobertas feitas pelo historiador expõe um retrato inédito da história regional e estão no precioso artigo que pode ser lido abaixo:
A Gripe Espanhola no Planalto Norte Catarinense: a pandemia veio de trem
Fernando Tokarski *
Entre setembro de 1918 e fevereiro de 1919 o Planalto Norte Catarinense viveu sob a espada fatal da gripe espanhola, uma pandemia que tal qual a covid-19 dos tempos atuais apresentou muitas mortes, carências no atendimento sanitário, incertezas e ausência de informações. É possível que a devastadora doença tenha vindo pelas ferrovias. Após exaustiva e pacienciosa pesquisa, na região listamos 361 mortes causadas pela gripe espanhola nos municípios de São Bento do Sul, Mafra, Itaiópolis, Canoinhas e Porto União. Pela geminação com Mafra, neste levantamento também incluímos o município de Rio Negro (PR) e não fizemos o mesmo entre Porto União e União da Vitória (PR) porque os registros cartoriais dessa cidade paranaense foram consumidos por um incêndio ocorrido em 1938.
Advertimos que estas informações são preliminares e inconclusivas, destinadas a fazer parte de um artigo maior voltado à literatura histórica sobre o assunto. Durante várias semanas perlustramos por centenas de atestados de óbitos existentes nos cartórios do Planalto Norte Catarinense, em rica fonte primária de pesquisa, no período que delimitamos entre setembro de 1918 e maio de 1919, considerando alguns registros tardios. Também é conveniente e seguro dizer que, como frisou de São Bento do Sul o pesquisador Henry Henkels, por vezes tivemos de ser epidemiologistas amadores para deduzir se parte das vítimas efetivamente morreu pela gripe.
Alguns tabeliães foram omissos ou relapsos nos assentamentos, deixando ao pesquisador a incumbência de dirimir acerca da causa da morte de muitas possíveis vítimas daquela pandemia. Também é oportuno acrescentar que os registros de óbitos incluem diferentes expressões de causa mortis, incluindo influenza hespanholla, gripe hespanholla, grippe, grippe epidemica, tifo, pneumonia grippal, tuberculose grippal, tuberculose grippal ou simplesmente morte natural. Nem mesmo os raros médicos que atuavam na região tinham ideia segura sobre o que estavam enfrentando, assim como 102 anos depois está acontecendo. Então, restringimos este estudo aos documentos civis dos cartórios locais, desprezando outras fontes de informação como relatórios governamentais ou mídias impressas.
Para esclarecimentos, é importante informar que a gripe espanhola não era originária da Espanha, mas dos Estados Unidos. Em plena Primeira Guerra Mundial os soldados norte-americanos levaram à Europa o vírus da doença. Naqueles tempos bélicos a Espanha, que se mantinha neutra no conflito, era um dos poucos países que noticiava sobre a pandemia e por essa razão ela passou a ser designada por gripe espanhola. No Brasil a peste chegou em setembro de 1918, mas oficialmente ela é reconhecida no País a partir de outubro daquele ano. Enquanto 50 milhões de pessoas morreram no planeta, estima-se que no Brasil foram 35 mil óbitos, embora tanto mundialmente como aqui estes números são discutíveis, tendendo à subnotificação, tal como acontece com a covid-19.

Como dissemos, nos cinco municípios do Planalto Norte Catarinense, mais o paranaense de Rio Negro, foram 361 mortes causadas pela gripe espanhola. O maior número delas ocorreu em Canoinhas, totalizando 138 falecimentos. O cartório da vila de Canoinhas registrou 91 óbitos; o do distrito de Três Barras contabilizou 29 mortes e o de Papanduva, 18. Curiosamente a maior parte aconteceu nas áreas rurais. No entorno da sede do município as localidades de Fartura, Cerrito, Caraguatá, Palmital e Salseiro foram os epicentros dos contágios. Um dos casos mais graves ocorreu na família de Valencio de Andrade, morador de Palmital. Entre 22 de novembro e 07 de dezembro de 1918 morreu sua mulher Leduina Rosa Fernandes, o próprio Andrade e seus filhos Leopoldo e João. No centro urbano, aos 21 de novembro morreu Maria Lenz, 42 anos, mulher do sapateiro Eustachio Affonso Moreira, importante figura local e um dos seus mais antigos moradores. Em 1920, dois anos depois do início da pandemia, a população do município de Canoinhas era de 20.801 habitantes, o que equivale calcular que se 138 deles pereceram, pelo menos 1,73% desse contingente morreu em consequência da gripe espanhola.

O jornalista Henrique Fendrich, originário de São Bento do Sul e que também estuda o assunto, acredita que foi o trem que trouxe a gripe espanhola ao Planalto Norte Catarinense, a partir de São Francisco do Sul, mesmo que nessa cidade portuária apenas uma morte pela pandemia tenha sido registrada. Valemo-nos dos 22 casos computados por Fendrich em São Bento do Sul como parte da nossa pesquisa. Igualmente emprestamos as notícias coletadas pelo pesquisador Henry Henkels nos registros cartoriais do distrito de Rio Preto do Sul, no município de Mafra, relevante entreposto ferroviário daqueles tempos, então nos limites com São Bento do Sul. Henkels anotou 79 óbitos, uma contagem expressiva para a população daquela vila.

Na cidade de Mafra e arredores pereceram outras 20 pessoas, mais 20 no distrito de Bela Vista do Sul. Neste caso, o epicentro da pandemia foi a localidade de Saltinho do Canivete, servida pelo ramal ferroviário São Francisco do Sul – União da Vitória. Esta constatação reforça a tese de Fendrich ao acreditar que a gripe espanhola subiu a Serra do Mar através das marias-fumaças. Porém, em Rio Negro (PR), cidade geminada à de Mafra, no lado catarinense, desmembradas há um ano antes da eclosão da pandemia e um dos mais importantes entroncamentos ferroviários regionais, as mortes pela peste atingiram 13 moradores, um número pequeno, considerando-se a sua população e à questão logística de transporte que ainda incluía a navegação a vapor.

Já em Itaiópolis as mortes produzidas pela gripe espanhola chegaram a 22. Todavia, os registros feitos pelo escrivão Domingos Tabalipa estão entre os mais imprecisos da região em se tratando dessa doença. Neles não há qualquer menção à gripe espanhola ou às expressões assemelhadas! Porém, no intervalo temporal das nossas pesquisas, como explicar que em 30 dias, numa única residência, três crianças morreram de morte natural? Assim foi com a família do imigrante polaco João Szostak, morador do lugar Moema ou nas suas imediações, que em 10 e 13 de janeiro, assim como em 10 de fevereiro de 1919, respectivamente, perdeu os filhos Sophia, João e Carlos. A mesma situação ocorreu com a família de João dos Santos Martins, do povoado de Butiá. Em 17 de novembro aos 23 anos morreu sua filha Idalina; no dia seguinte, 17, faleceu o filho José, de 26 anos; e no dia 25, aos 17 anos, sucumbiu outro filho, Francisco. Os três deixaram a vida por morte natural, conforme o cartorário Tabalipa.

Em nossas buscas nos apontamentos de Porto União, marcamos 40 registros de óbitos causados pela gripe espanhola, mesmo que na abrangência da cidade apenas 12 conseguimos listar, ainda que apelando para nossa condição de epidemiologista amador. O escrivão interino Francisco de Paula Dias também era confuso em suas anotações cartoriais, não seguindo os protocolos próprios dos registros. Por sua vez, no distrito de Vila Nova do Timbó, que compreendia o território do atual município de Irineópolis, foram 28 mortes. As localidades de Serra Grande e de Timbózinho foram os principais centros de irradiação da pandemia, ainda que relativamente distantes da estrada de ferro São Francisco do Sul – União da Vitória. Assim como no cartório central de Porto União, no cartório de Vila Nova do Timbó as mortes repentinas e sequenciais eram assentadas em razão de causas naturais, mesmo que envolvessem pessoas do mesmo grupo unifamiliar ou aparentados.

De qualquer forma, acreditamos que esta pesquisa é inédita em âmbito regional, servindo de base para a historiografia sobre tal temática no Planalto Norte Catarinense. Em breve deveremos ampliar sistematicamente este texto, incluindo um amplo quadro com os nomes dos que perderam a vida naquele período pandêmico que sucedeu a Guerra do Contestado na região das araucárias e dos ervais de Santa Catarina.
*Fernando Tokarski é historiador; membro da Academia de Letras do Vale do Iguaçu (União da Vitória/PR) e da Academia de Letras do Brasil (Canoinhas/SC)