Leia o último capítulo da jornada de Adair Dittrich pela Europa
Uma hora de diferença no fuso horário parece pouco. Mas para quem uma noite já passara em baldeações entre trens e um navio pelo meio, a falta desta hora já parecia crucial.
Eu sabia que tão cedo Londres não abriria suas portas para que dela pudéssemos desfrutar em nossas últimas andanças em terras de além-mar. Mesmo com as horas de um prolongado dormir sendo adiadas, imprescindível era embalar nossas trouxas, imprescindível era sair em novas andanças.
Nosso hotel dispunha de um amplo compartimento para guardar bagagens aonde um pressuroso oriental (que depois descobri ser filipino), com toda a cortesia, dispôs-se a acomodar as nossas.
Estávamos, já, quase na porta de saída, quando, um bem apessoado senhor falando em bom português, aborda-nos e entrega-nos um cartão de visita, também em nossa portuguesa língua escrito. Tratava-se de um vendedor de uma loja de artigos variados, ao gosto dos brasileiros. E, segundo ele, com preços condizentes à nossa moeda.
Foi nesta loja que encontrei o que, na véspera, pelas vitrines da famosa Bond Street eu já vinha vislumbrando com ansiedade. Mas os preços lá não cabiam em meu bolso. Encontrei um belo suéter de cashmere produzido no País de Gales. Um suéter que nunca mudou de forma, que nunca mudou de cor, que nunca perdeu penugem e que, nunca formou em sua superfície as indesejáveis bolinhas tão difíceis, senão impossíveis de ser removidas.
São duas as coisas que me atraem nestas viagens para além-mar. Os perfumes franceses e os britânicos suéteres de cashmere. E ainda de lá eu trouxe a tão alardeada saia escocesa que, de uma manta igual veio acompanhada.

Enquanto isto o Museu de Cera de Madame Tussaud já abrira suas portas. E lá fomos nós a nos deslumbrarmos com as impressionantes salas, com os personagens meticulosamente distribuídos de acordo com suas atividades, de acordo com suas profissões, de acordo com sua época na história.
Desnecessário é opinar aqui acerca da perfeição das imagens que desfilaram antes os nossos estupefatos olhos. Eu vi Pelé. Falei com ele. Achei muito estranho que ele ali continuasse sem nem piscar os olhos e sem nem me responder. Impressionante realidade estática de pessoas em um mundo e em um tempo que já foi e que lá continua sendo.
Percorrendo as salas fomos encontrando personagens reais e personagens que a ficção criara, quer em romances, quer em filmes, quer em peças teatrais. Reis e rainhas, o próprio Sherlock Holmes a passear na rua onde viveu, a Baker Street onde se situa o museu. Lá eu encontrei James Bond e Shakespeare, Elvis Presley e Marilyn Monroe… Incrível o desfile de famosos de todas as épocas. E saí pensando em algum dia lá voltar e passar mais horas a degustar de tanta magia…
Em um restaurante italiano pude saborear um talharim mergulhado em um molho à moda da Nonna. Para sair um pouco do cardápio inglês.

Mas ainda havia a National Gallery de Londres com inumeráveis e inigualáveis obras em seu acervo. Pinturas dos magos das telas desde o Século XV com Fra Angelico, Botticelli e Da Vinci até Matisse em pleno Século XX, passando por Degas, Renoir, Gaughin, Goya, Velasquez entre dezenas de outros. Claro que poucas salas pudemos, com calma, apreciar.
Restava-nos ainda andar por todos os pavimentos, por todos os departamentos e por todas as galerias da conhecida Harrods onde passamos mais algumas extasiantes horas. Onde alguns suvenires ainda encontramos para a memória de Londres conosco levar.
E, com uma capa da famosa gabardine inglesa, no famoso estilo inglês, de lá envolta eu saí. Porque a também famosa garoa de Londres em chuva se transformando já estava. E, acompanhando a capa, o seu indefectível chapéu. Mais um para a minha coleção.
Os ponteiros do Big Ben, implacáveis, não cessavam de correr. No hotel nosso amigo filipino entrega-nos nossas bagagens. Naquele amplo sanitário, quase um quarto de banho, fizemos nossa última toalete do outro lado do Atlântico. Da mala tirei meus agasalhos quentes. Porque no inverno do sul do Brasil no dia seguinte desembarcaríamos.
Inesquecível a cena de quando duas libras eu depositei nas mãos do gentil filipino. Duas libras apenas fizeram com que ele quase genuflexo nos agradecesse.

Minha amiga Jucy, ainda em Paris, adquirira uma pequena valise de mão onde acomodara suas últimas aquisições. E assim, puxando meu carrinho com minha bagagem e ela com suas bagagens de mão, fomos pelas molhadas calçadas em direção à Victoria Station. Onde um metrô rumo a Heathrow tomamos.
Foi uma viagem longa e demorada esta nossa última viagem de metrô, ora pelos subterrâneos caminhos de Londres, ora flanando pela superfície entre casas e prédios ou em meio aos campos verdejantes coalhados de brancas ovelhas pastando nos longes.
Era noite quando, pelas esteiras e escadas rolantes de Heathrow, circulamos até chegarmos ao grande saguão. E em busca do balcão da Varig nos dirigimos.
Não dá para esquecer que, quando lá nos ares estávamos, muitos quilômetros acima do mar, na escuridão da madrugada, apesar de todo o ar refrigerado do avião, eu me acordei com um inenarrável calor que uma sudorese mais ou menos intensa a muitos causava.
Era hora de usarmos os umedecidos e refrescantes lencinhos que nos entregaram já no início da viagem. A região equatorial estávamos cruzando.
O amanhecer já nos encontrou aterrissando na gélida garoa da capital paulista.
Enquanto eu me demorava com minha bagagem na fila de espera da alfândega, minha amiga Jucy passava, incólume, lisa, livre, leve e solta, com sua bolsa e sua pequena valise pelas amplas portas de vidro que, solenemente, a sua passagem, se abriram.
Havia a preocupação de perdermos nosso voo para Curitiba. Se uma luz vermelha a minha frente se acendesse lá ficaria eu retida para minuciosa revista de minha bagagem. Mas a sorte, em forma de uma luz verde que se acendeu, brilhou para mim. Corremos, então, para o portão de embarque, pois, a tripulação já, em alto e bom som, alardeava os avisos finais para que tomássemos nossos assentos na aeronave.
No desembarque em Afonso Pena eu, inutilmente, procurava por um desconhecido motorista encarregado de me trazer para casa. Meu sobrinho fizera um cartaz com meu nome para que, munido com ele, no portão de desembarque o cidadão nos aguardasse. O espaço que estava cheio de pessoas foi ficando vazio e logo outras já chegando estavam e nada de alguém com um cartaz com o meu nome aparecer.
A esse tempo só havia um único estacionamento para veículos em frente ao prédio principal do aeroporto. Para lá me dirigi a procura do meu carro. E o encontro, em local privilegiado, com um grande cartaz branco colado em seu para-brisa traseiro. Com meu nome, em garrafais letras vermelhas nele escrito…
Nem preciso é dizer que só de gargalhadas foi nosso retorno até Canoinhas onde minha amiga com os seus ficou. Então o rumo de minha casa, em Marcílio Dias, eu tomei.
Entre o muito a contar, o desfazer das malas, o saborear a deliciosa comida que minha mãe preparara para me receber, a distribuição de mimos e suvenires, o sono da noite chegou.

Que chegou com quatro horas de antecedência. Era hora de descansar. Porque no dia seguinte o mundo real estender-se-ia a minha frente. Com a velha rotina de todos os dias. Rotina que já me fazia falta.
Voltar para os locais onde a minha vida se esparramava por todas as noites e todos os dias. Mas, com as lembranças mais gostosas de um tempo que cravado ficou no fundo adormecido do lago da memória.
Para onde muitas vezes eu volto. E de onde pedaços eu trouxe nestas linhas todas que por aqui disseminadas foram.