[dropcap]U[/dropcap]ma viagem diferente a viagem de Verona a Viena. Diferente pela paisagem. Diferente pelo trajeto. Seguíamos em direção ao nordeste mais nordeste de nosso programado itinerário.
O Adriático, bem como o Mediterrâneo no seu todo, foi ficando distante. Não mais o mar agora, não mais a maresia como companhia, não mais aquele mar e aquela maresia que se não víamos, desde Portugal, pressentíamos.
Montanhas recortando-se contra o céu, primeiramente vislumbradas ao longe, banhadas pelo sol do amanhecer que nelas impregna, há milênios, aquela cor tão própria, tão delas,o deslumbrante rosado. O rosado das Dolomitas dos Alpes Orientais.
Desenhos fantásticos. Picos e cumes emergindo como agulhas a apontar para as galáxias. Lagos em seu bojo parecendo espelhos a refletir o sol daquela manhã tão linda.
E o comboio, como serpente, no vale a deslizar entre as montanhas.
Num repente a escuridão a tudo invade e a paisagem rouba de nosso olhar. O trem avança montanha adentro. O trem avança por um túnel sob os Alpes. Por muitos túneis. Por longos túneis. E a cegueira momentânea a nos toldar a visão logo que do interior deles emergíamos. Para outra vez a paisagem admirarmos. Paisagem repleta de bosques e pastos verdejantes. Paisagem com um quase nada do branco da neve mal vislumbrado ao longe no cume dos montes. Porque era verão.
E as cidades a desfilar em nosso caminho. Udine, Graz, Klagenfurt. E Viena, enfim, que surgiu, assim, de repente. Parecia que apenas havíamos acabado de embarcar em Veneza.
E agora? Tudo diferente outra vez. Diferente moeda. Diferente cultura. Culinária diferente. E uma muito diferente língua. Germânica língua. Da qual só algumas palavras, muito mal pronunciadas, eu conhecia. Eu vinha de uma vila alemã. De uma vila de germano-descendentes. Mas eu sou de um tempo em que o alemão era um idioma proibido em nossa terra. Minhas professoras do Sagrado Colégio onde passei, como aluna interna, os anos de minha infância e adolescência, eram austríacas. Mas já não se ensinava mais a fatídica língua natal delas. Porque era tempo de guerra. Da Segunda Grande Guerra Mundial.
Então estava eu ali com meu Dittrich, meu sobrenome austríaco, tentando comunicar-me, em inglês, na terra de meu avô Antônio, na terra de Antônio, o cervejeiro da Lapa.
Como sempre, com um mapa à mão e na cabeça as instruções recebidas na tenda de turismo da gare de Viena logo encontramos o hotel escolhido. Enquanto as fichas no balcão de recepção iam sendo preenchidas deparo-me com um colorido folheto mostrando músicos com trajes e perucas da época barroca. Com roupas e perucas como Mozart usava. E no folheto o convite para um Concerto na Sophien Sälle. Que teria início dentro de uma hora. Enquanto a gentil recepcionista providenciava nossos ingressos, corremos nos arrumar dignamente para um evento de tal magnitude.
Fantástica noite. Inebriantes músicas de Mozart. Alegres músicas de Mozart. Sentamo-nos, coincidentemente, ao lado de um casal de argentinos que conhecêramos já no trem que nos trouxera de Veneza.
Interessante observar aquelas pessoas todas presentes ao Concerto. Eu tinha a certeza de estar entre as pessoas de minha vila, de minha cidade. E junto com Juci comecei a identificar, no decorrer do intervalo, enquanto saboreávamos um café com creme de leite, os Mayer, os Ruppel, os Kersten, os Mews, os Voigt, os Metzger, os Loefler, os Schroeder, os Schreiber … enfim, pessoas com o mesmo porte, o mesmo jeito, quase sósias dos nossos daqui.
Amanhecemos em Viena num dia de um deslumbrante sol de verão e tentamos conhecer alguma coisa desta cidade-capital da música. Foi na Áustria que nasceram e viveram alguns dos mais marcantes gênios da clássica música que nos enleva e nos leva aos espaços. Os Strauss das valsas e operetas, Brahms, Schubert, Haydn, Mozart, Mahler, Franz Lehar, lembrando apenas de alguns que mais me marcaram na vida.

Visitar o deslumbrante Palácio de Schönbrunn situado no alto de uma colina. O palácio onde viveu Sissi, a Imperatriz. Onde nasceu Maria Antonieta. Onde nasceu a nossa Imperatriz Leopoldina, primeira esposa de D. Pedro I.
Conhecer a igreja de St. Karl com seus ícones e seus coloridos vitrais mostrando incríveis cenas bíblicas, com sua ímpar abóboda e sua altíssima torre.
Enquanto subíamos as escadarias para contemplarmos Viena do alto conhecemos uma garota brasileira que estudava em Londres, e, em férias, junto com sua mãe peregrinava pela Europa. E ela foi no contando dos locais e das coisas que não poderíamos perder. E foi nos mostrando a forma mais barata e simples de se comer. Que era, em uma mercearia, pedir um pão partido ao meio e nele ir colocando fatias de presunto ou mortadela e queijo. E a tudo se agregava um copo de refrigerante ou suco para se saborear nos bancos de alguma praça adjacente.
E a garota ainda incentivou-nos para que conhecêssemos Budapest. Era só tomar um aliscafo e em poucas horas lá se chegaria. Era só tirar umas fotos para documentos e pegar o visto na Embaixada da Hungria.
Enquanto conversávamos, íamos admirando as esculturas da Karlplatz. E, dentre tantas clássicas, pasma fiquei diante de uma de pequeno porte, em estilo moderno, no interior de um jardim circular.
Contrariando os que me acompanhavam e que naquela imagem nada viam além de ferros retorcidos, continuei contornando o jardim. E eis que, num repente vislumbrei, em toda a sua grandeza, a mais bela imagem moderna de um Menino Jesus na manjedoura deitado e ajoelhados a seus pés, Maria e José.
Corriam rápidas as horas e numa galeria encontramos um foto-automático que nos eternizou num retrato a ser colocado no visto para se entrar na Hungria. Nem embaixada e nem consulado abertos encontramos. Ainda bem que no local onde compramos as passagens para o Aliscafo informaram-nos que o visto poderia ser obtido no momento de nosso desembarque em Budapest.
E assim, repletas de informações fomos ver o crepúsculo do entardecer no lugar mais alto da mais alta e mais famosa roda-gigante do mundo. A roda-gigante de Viena. Parecia que estávamos dentro de um bondinho que, lateralmente, seguia rumo às alturas. E lá do alto Viena toda a se perder de vista. O Danúbio espelhando os últimos raios do sol. O lusco-fusco do final do dia confundindo-se com o lusco-fusco das luzes que na imensa capital da música começavam a piscar.