Tenho certeza de que todos os deuses conspiraram para que tivéssemos podido desfrutar de toda a beleza do entardecer de Viena do alto da grande roda gigante sob um dia ainda límpido e relativamente fresco. Porque foi estritamente o tempo necessário para deixarmos o Parque Prater, o parque onde ela se situa, para que o céu enegrecesse. Não o negror da noite que noite não era ainda. Era o negror das nuvens escuras que os céus cobriram. Com um vento frio e uma fina chuva a nos enregelar.
Não se pode deixar Viena sem que se faça um giro pelos alegres cafés e restaurantes que se concentram pelos anéis que circundam a cidade. E encontramos o endereço certo guiadas pelo som de animadas valsas de Strauss logo que descemos do bonde no ponto exato que a gentil recepcionista do hotel nos indicara.
Todo mundo dançando. Todo mundo cantando. Uma festa ali que se repete a cada noite. Uma festa onde personagens mudam. Uma festa da qual, por uma noite, também nós, éramos personagens. E nas longas mesas todos alegremente a contemplar, a sentir o aroma, a saborear as finas salsichas de Viena, a variada gama de pães e a vibrar com os canecos da dourada cerveja que, ao fluir dos barris sob pressão, os coroava com branca espuma transbordante.
Não havia cansaço. Não havia estafa. Porque onde há alegria o corpo de energias carregado fica.
Depois de horas de comemoração e confraternização retornarmos ao ponto dos bondes a fim de tomarmos o caminho de volta até a esquina onde se situava o nosso hotel.
E agora? Qual bonde deveríamos pegar? Com frio e chuva, sim, mas muito bem abrigadas sob a cobertura do ponto dos bondes olhávamos, sem entender, aquela profusão de números indicativos dos percursos, das linhas, das direções. Em inglês, sempre o inglês a nos ajudar, fomos perguntando às pessoas ali presentes que ou sabiam menos que nós ou não nos entendiam. Até que, de repente, de dentro da noite surge a Sofia. Lembro apenas que seu nome era Sofia. Muito alta, muito loira e muito linda, irradiando simpatia, em bom português pergunta-nos aonde desejávamos ir. Foi um susto. Um espanto. Como percebera que éramos ali duas brasileiras desnorteadas na noite de Viena?
Fácil, respondeu ela, muito fácil. Porque enquanto tentávamos, em inglês, descobrir o número do bonde que deveríamos tomar, intercalávamos muitos “nés” pelo meio da conversa. Né?
Sofia era de Santa Catarina e morava há anos em Viena onde se graduara em artes. E nos dizia que aquele vento gelado daquele entardecer e daquela noite era estranho após dias anteriores terem sido de calor superior até ao de Roma. Seu destino ficava na mesma direção de nosso hotel e conosco no bonde embarcou. Rimos muito e demos graças ao nosso né, pois foi devido a esta partícula tão característica de nosso linguajar que encontrarmos o caminho do retorno.

E, ao clarear do dia seguinte já estávamos nós na Westbahnhof de Viena tomando um trem que nos levaria à cidade onde Mozart viveu.
As paisagens da Áustria primam pela diversificação. É uma sucessão sem fim de montanhas e desfiladeiros, de vales e lagos, de cascatas e bosques carregados de pinheiros, tílias e abetos e de verdejantes pastos onde se vislumbra o gado a pastar.
Foi uma pitoresca viagem que, em princípio, longa nos parecia. E de repente a nossa frente Salzburg surge.

Com um mapa cheio de instruções em espanhol, fomos logo procurar pelo terminal dos bondes ali, pertinho da estação ferroviária. E em seu bordo seguimos até um ponto final. Que ficava perto da Fortaleza de Hohensalzburg. Para chegar lá no alto pegamos um funicular. Onde pudemos sentir a beleza toda da cidade e das montanhas que a cercam.
Outro bonde a seguir nos levou para o Centro Histórico. E então visitamos a casa dele, a casa onde ele viveu, a casa de Mozart. Uma casa externamente sem grandiloquência. Mas com riquíssimas histórias em seu interior. Lá estão inúmeras maquetes de cenários de suas óperas apresentadas em várias épocas e em várias cidades da Europa. E seu violino. O violino tantas vezes por ele solado. Onde tanta música viveu. De onde tanta música saiu.
A cidade toda vive Mozart. Respira Mozart. Em muitas esquinas e praças evolam-se no ar melodias que saem de solitários violinistas trajando roupas ao estilo do grande mestre de Salzburg. Acordes tão conhecidos de seus concertos e sinfonias estremecem o ar.
Até quem pensa e diz não gostar de música clássica fica estarrecido e surpreso quando ouve Mozart pelos infinitos cantos da cidade.
Foi o que ocorreu com uma colega brasileira que conheci em um dos cafés de Salzburg. Dizia-me que não apreciava este tipo de música. Que não fazia parte do seu gosto e do seu tempero musical. Porém, quando se deu conta, havia percebido que não só conhecia como já tinha, em algum dia de sua vida, ouvido tudo o que naquela cidade pelos ares ecoava.
Porque, mesmo que não se saiba, Mozart é ouvido, a cada passo, em todas as esquinas do mundo.