O Agente Laranja foi um cruel exterminador de milhares de indefesas criaturas
Depois que os trens da tarde deixavam a minha vila e a serraria — que ficava entre a linha férrea e o rio Canoinhas — encerrava suas atividades, a minha vila era um silêncio só. Silêncio alternado pela passagem de algum comboio cargueiro, pelas batidas do sino da estação ferroviária ou de um que outro caminhão, que pela estrada de baixo, pela frente de minha casa passasse.
Com o passar dos tempos, quando trens quase já não circulavam e a serraria diminuindo em muito as suas fainas, parecia que nada toldaria o silêncio das noites e das madrugadas de minha terra.
Até o dia em que pessoas começaram a se juntar, madrugada escura ainda, bem na esquina que nossa casa fazia com o velho Salão Metzger, hoje Bar do Coringa.
Chegavam apressados, homens e mulheres, das mais variadas idades. Todos com uma garrafa, não térmica, de café, em uma das mãos e um embrulho na outra. Descobri, algum tempo depois, que no embrulho de papel levavam ou algumas fatias de broa com banha ou melado ou uma pequena marmita com a boia que seria seu almoço. Comida feita de véspera e carregada fria, assim como fria seria ingerida na folguinha do meio-dia para saciar um estômago em revolução.
Parecia que algo aguardavam. Falavam alto, riam muito. Esperavam a chegada de um caminhão que fazia mais barulho que a algaravia das trinta pessoas que lá se aglomeravam. Na escuridão da madrugada partiam. Todos em pé na carroceria. E assim, sacolejando pela estrada poeirenta e esburacada dos tempos de seca seguiam rumo ao trabalho que lhes renderia a comida da família para o mês. Nos períodos de chuva seguia o veículo de atoleiro em atoleiro, derrapando em cada curva e jogando todo mundo de um lado a outro da carroceria.
Precisavam sair de madrugada porque as plantações de batatas para onde eram levados localizava-se em local distante. Aliando as péssimas condições das estradas ao precário estado do veículo, às vezes a viagem durava até mais de uma hora.
Retornavam no escurecer. Desembarcavam daquela carroceria bem devagar. E cabisbaixos, cansados, costas pendentes tomavam o caminho de suas casas. Alguns tinham ainda alguns quilômetros a pé para percorrer…
Não só de nossa vila eram requisitados trabalhadores para as plantações de batatas. De um raio de uns vinte quilômetros, ou mais, caminhões traziam e levavam pessoas para o amaino da terra, para a semeadura, para a colheita, para o ensacamento, enfim para o sem número de atividades que a lavoura requer. Estas batatas tinham uma grande aceitação no mercado nacional. Falava-se até em volumosas exportações.
Naquele tempo eu era diretora clínica do hospital. E lá permanecia praticamente o dia todo. Quando não no centro cirúrgico, envolvida em algum procedimento anestésico, estava a resolver os problemas de todo o nosocômio. Não contávamos ainda com uma Enfermeira Chefe de nível superior e nem de um administrador. O pessoal da diretoria, voluntariamente, fazia uma administração à distância e ao findar o expediente em suas empresas, no final da tarde, iam ao hospital. Então lá permanecia eu para tudo resolver…
E foi assim, em uma tarde, que da memória não me sai, que um dos trabalhadores das plantações de batatas chega até nós. Trazido na carroceria de um caminhão.
Foi mais uma cena dantesca em minha vida. É claro que naquela época não tínhamos sequer uma sala de emergência. Que dirá uma UTI! Ali, num leito da enfermaria eu o examinei.
Tratava-se de um homem ainda jovem. Totalmente em coloração alaranjada. Sudorese abundante. Hipertermia. Termômetro lá pelos quarenta graus centígrados. Hipertensão severa. Taquicardia nas alturas. Totalmente obnubilado. Em choque. Que tipo de choque? Em coma, isto sim. Em coma.
O que foi? Como foi? Quando começou? Quem o acompanhava só me falou que o rapaz estava pulverizando um herbicida. Repentinamente apareceu correndo no galpão arrancando a roupa que o protegia e logo caiu prostrado ao chão. E aquela cor alaranjada de súbito passou a tomar conta de seu corpo.
Nenhuma hipótese diagnóstica se encaixava em minha mente. Mas os cuidados emergenciais foram sendo tomados. Medicação para baixar a temperatura. Sem resultado. Subia ainda mais. Para diminuir a pressão arterial. Sem sucesso. Às pressas uma intubação oro-traqueal. Adaptei logo o respirador automático Takaoka, o pequeno notável que tantas vidas salvara. Oxigênio. Várias punções venosas para transfundir soro e plasma.
Uma sonda vesical foi passada. E a urina era uma tinta laranja só. O suor dele a escorrer, como se de córregos alaranjados fosse seu corpo. Colhemos uma mostra de sangue. Apenas para que a gravidade deixasse um plasma sobrenadante… porque laboratório ainda não tínhamos. Depois de sedimentadas as células sanguíneas um plasma sobrenadante da cor de uma laranja madura restou.
E aguardar… enquanto mil pensamentos para saber o que havia acontecido com uma pessoa tão jovem que alguns minutos antes de cair ao solo estava com suas plenas funções executando um trabalho.
Finalmente chega alguém da tal plantação de batatas. Mostra-me a caixa do herbicida que estava sendo aspergido na mata adjacente pelo jovem trabalhador. Em sua fórmula o terrível veneno. Em sua fórmula, Dioxina.
Tentativa inútil de comunicação com o Instituto de Toxicologia mais próximo. As ligações telefônicas demoravam mais de 8 horas para se completar. Quando se conseguia falar…
O óbito chegou antes.
Segundo a chefia da plantação o moço não seguiu os trâmites prescritos para proceder a pulverização do veneno. Não usou corretamente o EPI (Equipamento de Proteção Individual) preconizado. Usou o pulverizador contra o vento, fazendo com que o Agente Laranja viesse todo em cima dele.
De nada adiantava ficar sabendo destes detalhes. Foi uma dolorosa tarde em que eu vi a vida de uma criatura sumir aos poucos apesar de todos os nossos esforços.
As roupas que ele usava, os lençóis e o colchão da cama onde seu corpo, ainda latejando vida, repousou pela última vez foram as testemunhas mudas da sanha devastadora de um veneno usado para acabar com o verde que atrapalha. E em tom laranja todas estas peças ficaram marcadas para sempre.
Porque o Agente Laranja não perdoa.
Saber que o Agente Laranja foi um cruel exterminador de milhares de indefesas criaturas faz-me ainda tremer de indignação ao dele me lembrar. Não era um agente secreto de algum órgão civil ou militar de potências que o mundo dominam. Mas foi um terrível assassino que, à época da guerra do Vietnã, dizimou milhares de florestas e aldeias e quem nela vivia. Dizimou todos os seres vivos. Vegetais e animais.
Com a intenção e ou a desculpa de ser um mero herbicida, em toda a década de 60 e até o princípio da de 70 do século passado aviões aspergiram oitenta milhões de litros deste agente laranja sobre o território vietnamita. Oitenta milhões de litros do herbicida que continham mais de quatrocentos quilogramas de dioxina.
As sequelas restam até hoje. No solo, nas águas, nas pessoas.
Mas o Agente Laranja, com seus efeitos catastróficos, tendo a finalidade de erradicar a mata e o verde que atrapalharia as plantações de grãos e tubérculos, sob o som de trombetas e salvas de canhão entrou solenemente em todo o território brasileiro.
Inclusive aqui em nosso entorno. Deixando a marca assassina por onde passou. Será que é apenas um passado?