Não havia horário de verão ainda naquele fevereiro de mil novecentos e quarenta e quatro em que eu, pela vez primeira, dormia longe de minha mãe, de meu aconchego, de meu mundo, dos meus conhecidos aromas tão amados.
Embora o dia já tivesse raiado naquela madrugada o sono era intenso ainda para todas as internas do Sagrado Colégio. Não foi o trinar dos passarinhos moradores das árvores vizinhas e nem a claridade que já se imiscuía pelas vidraças o que nos acordou. Naquela primeira-manhã-madrugada o que nos trouxe do lado de lá, do lado de lá do mundo dos sonhos para um desconhecido mundo do lado de cá foi o estridente e contínuo som de uma campainha, de um sino ribombando em nossos ouvidos, em nossas cabeças. De um sino que ecoava tímpanos adentro fazendo balançar o meu novo mundo.
Sonolentamente lavei o rosto, escovei os dentes, vesti o uniforme e entrei na fila que se formava e seguiria depois escadarias abaixo e corredores à frente rumo à capela para as primeiras orações do dia, para assistir à Missa e sentir na alma as primeiras impressões desta nova vida que se descortinava a minha frente.
A capela ficava na velha casa de madeira, ao rés do chão, de portas abertas para um lindo, florido e arborizado jardim aonde os passarinhos já entoavam as melodias que anunciavam o amanhecer.
Nos bancos do fundo, ajoelhadas, em completo silêncio, em profunda meditação, já há algumas horas, se encontravam Madre Albertina, a superiora e demais Irmãs.
Tomamos nossos lugares bem à frente e, como não poderia deixar de ser, o meu lugar era na primeira fila, bem ao lado da porta que se abria para o jardim. Naquele encantamento em que me encontrava eu não sabia se olhava para o altar ou se ficava admirando, embevecida, as flores ao lado.
O altar foi se enchendo de pequenas luzes. Eram as velas que estavam sendo acesas por Irmã Amanda, mulher de múltiplos afazeres, que, além do ofício de eficiente mestra, era também a responsável pela capela e a sacristã que ajudava o Padre em todas as cerimônias religiosas que lá se realizavam.
Nessa época não havia ainda capelão no Colégio. Os Padres Franciscanos, que moravam na Canônica da Matriz Cristo Rei, revezavam-se nos ofícios das Missas diárias, nas Bênçãos das tardes de domingo e no confessionário semanal. Pecados graves, e dos grandes, a serem confessados semana a semana… pelas Irmãs e pelas alunas internas, maioria crianças ainda. Mas era o costume. Era a religião. Era a cultura.
A música que se ouvia na capela era um êxtase. As Irmãs cantavam junto com as internas e era um verdadeiro coro de anjos conduzido pela Maestra Irmã Carolina que ainda fazia a introdução, a música de fundo e os acordes finais com seus ágeis dedos passeando pelos teclados de um harmônio.
Finda a Missa tomava-se o caminho do refeitório para a primeira refeição do dia que se compunha do tradicional café com leite e pão cm manteiga, ritualmente precedido e sucedido, como todas as demais refeições, de uma prece em comum.
No retorno ao dormitório, todo mundo mais relaxado, apesar do silêncio que ainda perduraria, oficialmente, até o recreio no intervalo das aulas… Era o tempo de arrumar a cama, descer para a sala de estudos e aguardar o primeiro dia em minha nova escola.
E eis que então chegada foi a hora de nos dirigirmos às nossas salas de aula. A minha ficava quase no fim do corredor do primeiro pavimento do prédio novo de alvenaria. Mas, só as paredes laterais eram de alvenaria. Na frente havia uma grossa cortina escura que abrangia quase toda a parede. Depois eu soube que aquela cortina era o famoso pano que fechava e ou abria o palco. O palco onde eu já tinha visto minhas irmãs nas solenidades de suas formaturas da Escola Normal. O palco onde se desenrolariam os nossos teatros, onde poemas seriam declamados, o palco, enfim, onde se realizariam todas as solenidades do Colégio Sagrado Coração de Jesus, de Canoinhas.
E foi então, também, que eu descobri onde se situava o imenso salão onde o público ficava para apreciar e aplaudir todos aqueles espetáculos. A parede do fundo de minha sala era de madeira. Mas não era uma parede fixa. Era uma parede formada por enormes portas que separavam as salas de aula. E estas enormes portas se uniam por dobradiças, abrindo-se e fechando-se, de lado a lado, como se fosse uma sanfona, a fim de formar aquele grande salão.
Também se ouvia, durante as aulas, o som de um piano, ou de uma cítara, de um violino ou de um acordeão tocando não muito longe. E este som vinha de uma salinha que ficava atrás do placo. Era mais uma salinha de música de nosso educandário.
Pensei errado quando pensei em um longo papo com as alunas externas. Durante as aulas não se poderia conversar. Irmã Leocádia, a nossa professora do quarto ano elementar, sempre muito séria, impunha respeito com sua humilde maneira de ser. E no recreio as externas iam para o pátio e ou ficavam no varandão aberto ali ao lado. E eu subia com as internas para o lanche das dez horas no andar de cima.
O sino tocava exatamente ao meio-dia para o encerramento das aulas e era o tempo exato e justo de se deixar a mochila na sala de estudos, subir ao dormitório a fim de trocar o uniforme azul e branco por um vestido comum. E por cima do vestido um avental de cor azul mais clara, de alças, fechado atrás e que seria o nosso uniforme para se passar o dia todo até que chegada fosse a hora de nos deitarmos.
As atividades eram tantas entre estudar e reconhecer o novo território encantado que o tempo se passava num átimo de segundo. E muitas histórias ainda a serem contadas e lembradas pela vida.