Leia a última parte da triste história de Zara
Lucinha cresceu. Frequentava a escola da vila. E Zara pode viver sua vida ajudando dona Rosina. Nas horas de folga vendo televisão com ela. Assistindo novelas com ela. Deslumbrando-se com os artistas e cantores que a telinha exibia. Estava feliz.
Apareceu, então, um outro alguém em sua vida. Um senhor de mais idade. Aposentado. Alguém que fazia de tudo um pouco. Alguém que seguidamente estava consertando algo ou na casa ou no restaurante de dona Rosina. Do que se precisasse ele dava um jeito. Serviços de jardinagem, de pedreiro, de carpinteiro, de marceneiro. Viúvo já há alguns anos. Vivia só. Filhos já casados que pouco tempo dispunham para visitá-lo ou dele saber. Pediu que Zara fosse morar com ele.
Zara resistiu, a princípio. Mas, pensando melhor, seria um arrimo para ela e para a pequena Lucinha. Seu Genaro, um brioso filho de italianos, ficou radiante. Falava a todo mundo que desde que sua mulher falecera, nunca mais tivera uma casa tão limpa e perfumada e nunca mais comera uma comida tão gostosa e tão boa.
Foi só então que seus filhos foram visitá-lo. E não gostaram nada desta nova vida do velho Genaro. Tentaram, a todo custo, difamar a pobre Zara. Queriam fazer com que o velho entendesse a vida anterior dela. Que já tinha uma filha com um pai que sabe-se Deus de onde viera, além de outras deturpações mais em cima dela. Queriam incutir na cabeça do pai que ela não servia para com ele viver.
Tentava apaziguar os ânimos de sua já adulta e emancipada prole, fazendo-os ver que a ele interessava apenas Zara. Que ela viera colorir sua vida antes tão cinzenta. Fora um tempo mais ameno em meio às turbulências que marcaram até então a vida dela.
Parecia, no entanto, que as tragédias na vida de Zara jamais teriam fim. E uma vez mais o estigma tingiu sua testa. Rompera-se importante artéria no cérebro do velho italiano. Hemorragia profusa e intensa que o levou a um coma profundo e irreversível. Em poucos dias deixou este mundo. E Zara uma vez mais ficou a sós.
Durante a noite, na casa silenciosa e solitária, Zara começou a ver sombras que atravessavam as janelas, que atravessavam as cortinas e corriam pelas paredes. Sombras e luzes que se alternavam. As alucinações a perseguiam em seus sonhos. Seus gritos pedindo por socorro atravessavam as madrugadas. Em resposta só soturnas gargalhadas ela ouvia. Postigos batiam sem parar, como se um vento infernal, incessantemente, os empurrassem. Urros de feras enjauladas rodeavam seu quintal. Vidraças partiam-se. De manhã encontrava pedras espalhadas pela casa. Mas ninguém mais via ou ouvia qualquer coisa. Alucinações? E as pedras no assoalho?
Durante o dia filhas e filhos e genros e noras do seu Genaro azucrinavam sua vida exigindo que, de imediato, desocupasse a casa que era deles. Durante a noite mandavam moleques azucrinar seus ouvidos, seus olhos e seu espírito.
Entre a realidade e o que julgava ser alucinação sua mente foi piorando. Certa manhã os vizinhos não a viram abrir as janelas. Não a viram ir ao quintal. Não a viram. Encontraram-na encolhida em um canto do quarto, os negros olhos esbugalhados, vestes rotas, desgrenhados os cabelos. Muda.
Como uma fera defendia-se de quem tentasse dela se aproximar. Às custas de muitas promessas e preces a todos os santos conseguiram, finalmente, colocá-la em um carro e levá-la ao hospital na cidade próxima.
Medicações para tentar conter seus alucinados gestos pouco ou nenhum efeito faziam. Preciso era transferi-la para um hospital que tratasse de doenças psiquiátricas. Tentaram o mais famoso que ficava na grande cidade de outro estado, onde os então chamados indigentes eram atendidos. Não havia vaga. E não havia dinheiro para que se pagasse um tratamento em alguma clínica particular.
Mas, havia uma solução. O Instituto de Previdência poderia arcar com este tratamento. Afinal, ela vivera por longo tempo com um de seus beneficiários. Até pensão poderia vir a receber. Dona Rosina falou com um advogado. Que providenciou a documentação.
Enquanto a burocracia decidia sobre os direitos de Zara, as suas alucinações só aumentavam. Andava pelos corredores do hospital, noite adentro e madrugadas afora, apenas com uma leve e curta camisola a lhe cobrir o corpo. Nas mãos, carregando, como se ela fosse uma porta-estandarte, o suporte com o frasco de soro nele pendurado. O soro onde misturada estava a medicação própria para amenizar a sua agitação.
Nada e nem ninguém conseguia segurá-la e ou prendê-la ao leito. Não dormia. Não havia palavra que a acalmasse ou a seduzisse. Girava e flanava em outros mundos. Discursava a noite inteira. Palavras saíam de sua boca o dia inteiro. Todo o silêncio acumulado em uma vida estava agora sendo transformado em milhões de sons nunca antes articulados para dizer de coisas que ela jamais havia visto. Que ela jamais em sua vida havia conhecido.
E em uma noite em que por aqueles corredores desfilava com seu estandarte, desprendeu-se o clipe do equipo de soro. O clipe que controlava o gotejamento da forte medicação que deveria acalmá-la. E o líquido jorrou em borbotões para dentro das veias de Zara, para dentro do coração de Zara. Medicação que em seu organismo penetrou em altas doses, em grande velocidade, em curto espaço de tempo, diminuiu os seus movimentos respiratórios até cessá-los por completo. Afetou diretamente os batimentos cardíacos, parando-os por completo.
Todos os recursos terapêuticos tentados foram inócuos. Zara deixava a vida. Zara desvencilhava-se de seu estigma.
Na manhã do dia seguinte estava pronta a documentação que tornaria Zara uma beneficiária da previdência social. Documentação que garantiria o tratamento de Zara em hospital especializado na grande cidade do estado vizinho. Documentação que lhe daria o direito de receber uma pensão pelo tempo que lhe restasse de vida aqui na terra…
Zara vagou pelo espaço sem saber onde se encontrava. Auxiliada por seus mentores espirituais no outro lado da vida sentiu-se leve. Em um hospital na amplidão das campinas eternas ela estava sendo tratada.
E Lucinha? Lucinha foi morar com a avó. Onde “ele” se encontrava.
Do outro lado da vida o espírito de Zara não tinha ainda forças e condições para proteger sua filhinha. E o que fora o seu algoz era agora o algoz de uma criança indefesa.
Lucinha fora atacada pelo velho avô em plena mata, à luz do dia. Seus gritos alucinados pelos campos ecoaram.
E “ele” para a penitenciária retornou. Condenado a lá viver por muitos anos mais que os anos de vida que lhe restavam na terra.
Lucinha foi morar com uma tia, a irmã caçula de Zara. Feliz lá viveu seus dias. Acabava-se o estigma de Zara.
Findavam-se as sequelas do estigma de Zara.