O Estigma de Zara (II)

Leia a segunda parte do conto de Adair Dittrich                                                                                        

 

A vida tornava-se a cada dia mais difícil na pequena gleba de terra onde Zara vivia com seu menino, sua mãe e seus irmãos. Os mais velhos encontraram emprego, como serventes, nas fábricas das cercanias. E foram viver sua vida. A roça, cobrindo-se de ervas daninhas, dela pouco poderia ser colhido para o sustento dos que ficaram. Zara e sua mãe não davam mais conta do amaino da terra e dos cuidados com a criação. De um emprego onde tivesse casa e comida ela precisava. Para ajudar no sustento da casa. Para ajudar no sustento de seu menino. Para comprar os remédios para o seu menino. Acanhada e humilde, foi, pela primeira vez, trabalhar com dona Rosina no restaurante da estação de trem.

 

Como era ainda uma menina muito franzina dona Rosina achou melhor colocá-la para limpar e polir o grande salão de refeições, arrumar as mesas, ajudar a servir as refeições e enxugar a louça. Melhor deixá-la longe das chamas do grande fogão. Para que não corresse o risco de se queimar. Tornou-se exímia copeira e arrumadeira. Além de garçonete com requintes de etiqueta francesa até.

 

Em todos os dias, logo após o almoço um jovem que trabalhava na serraria ali perto, vinha conversar com ela. Morava em um sítio ao par das terras dos pais de Zara. E a conhecia desde que eram pequenos, desde os primeiros dias na escolinha ali do mato, desde os dias de Missa na capelinha.

 

Não demorou a chegar o dia do noivado. Casaram. E Zara levou o seu menino para morar com eles. Em todas as tardes de domingo o marido de Zara ia pescar. Sempre voltava com um cesto cheio de bagres, lambaris e traíras. O que ajudava nas refeições de alguns dias.

 

Numa tarde de verão, com a claridade a se estender por muitas horas ainda, Zara esperou em vão pela volta dele. Chegou a noite. A apreensão a aumentar. Passavam-se os dias e ninguém dele sabia ou tivera notícia. O rio não contava histórias. Uma semana depois o corpo dele foi encontrado além já da foz do Rio Negro. Morte por afogamento era o resumo do laudo pericial que recebera em um triste papel a confirmar sua solidão. Dona Rosina não tinha como acolhê-la para trabalhar no restaurante.

 

O movimento de passageiros nos trens diminuíra muito. Todo mundo preferia viajar de ônibus. E dona Rosina não poderia dispensar nenhuma de suas auxiliares, assim, de repente, para abrir uma vaga para Zara. Mas, recomendou-a para trabalhar na casa do diretor do empreendimento do governo, que ficava no terreno que fazia divisa com o da família de Zara.

 

Quando o diretor foi transferido para o litoral, Zara foi com eles. Os anos foram passando. E a vida dela foi mudando. Era uma pessoa da família na casa onde trabalhava. Recebia todo o carinho e todos os mimos do mundo.

 

Num entardecer em que o sol esparramava fogo nas turbulentas águas do mar o patrão mostra-lhe uma carta. Que um amigo enviara. Com uma notícia que fez Zara soltar um uivo que vinha das profundezas de sua alma. Uma carta que contava, em detalhes aterradores, da morte do pobre menino dela. Menino que crescera naquele lindo capão rodeado de ervais. Que até na escolinha ali do mato tinha sido levado para tentar escrever algumas sílabas, para tentar soletrar algumas sílabas, para tentar escrever alguns números, para tentar fazer algumas continhas de somar…

 

Mas, o menino, por seu modo de andar, por quase nada da vida e do mundo captar, por sua quase ininteligível conversa, era objeto de escárnio e deboche por parte de alguns seres malévolos vestidos em forma de colegas de escola. E motivo de riso por alguns estúpidos mais velhos também. Pessoas de má índole que, na noite da véspera de São João, incentivaram-no a dançar e a pular rente à fogueira. Para, às custas de seus trejeitos, rir, gargalhar e divertir-se.

 

Foi então que o inevitável aconteceu. A crise convulsiva tomou conta do menino. E em espasmos contra as chamas ele tombou. Circunstantes pasmos e aturdidos. Paralisados ante o horror. Paralisados os gestos que do fogo tirariam o menino. Paralisados os gestos que abafariam as labaredas que envolviam o menino. Paralisados os gestos e o remorso pela iniquidade do que haviam feito.

 

Marmanjos embriagados embrenharam-se, em fuga desenfreada, pela mata, na tentativa de ficar longe daquele dantesco quadro em chamas que em frente a eles se desenrolava. Tentar fugir de uma visão que os seus remorsos tornariam a lhes mostrar durante os dias todos em que pelo mundo seus corpos rolaram.

 

Quando os mais velhos acorreram, retiraram apenas um corpinho quase todo tomado por profundas e extensas queimaduras de dentro das incandescentes brasas. Não deu tempo de chegarem ao hospital. Sua agonia chegou ao fim enquanto o transportavam na caminhonete de um vizinho.

 

O grito de Zara, ao ler o relato do trágico fim de seu menino, ressoou pelo mar afora. Reverberou pelas ondas. A dor em seu peito era do tamanho do mundo. E o fogo que a consumia era maior que o fogo do sol que no horizonte inundava as águas revoltas no oceano além.

 

Foi muito depois desta tragédia que Zara conheceu o amor. Na forma de um marinheiro de cabelos encaracolados e olhos azuis. Apesar dos conselhos de seus patrões, Zara deixou-se envolver por ele. Por suas juras de amor eterno. Por suas palavras adocicadas. Por suas promessas de uma doce vida feliz e promissora. E assim nasceu Lucinha. Que ele nunca chegou a conhecer. Embarcara em um cargueiro rumo ao oriente. Um navio cargueiro que no porto de partida nunca mais ancorou.

 

Zara ficava por horas à beira do cais com os olhos perdidos num horizonte sem fim, na esperança de um dia vê-lo nos longes apontar.

 

A pequena Lucinha crescia bela e exuberante. Com cabelos cacheados e um sorriso que cativava a cada dia mais os patrões de Zara.

 

Um dia o patrão sentiu-se mal e no local onde trabalhava seu corpo tombou sem vida. Repentinamente. Atestaram que teria sido um infarto fulminante. Do coração. E a patroa tinha que desocupar a casa. Que era do governo. Ela e as crianças iriam morar com a mãe. Na capital. Aonde não haveria espaço para Zara e Lucinha.

 

Só lhe restava arrumar sua mala e partir. Voltar para o lugar onde nascera. Onde encontraria sua mãe. Onde a dor a esperava. Onde a visão de sua agonia a desesperava. Foi assim, com o coração sangrante, em prantos, que dona Rosina a recebeu em seus braços.

 

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