O Amor jamais deixou de lhe escrever
O Amor-Poeta voluteava pelas madrugadas, a escrever poemas de amor, a escrever poemas cheios de soluço e dor, a escrever poemas entrelaçados de sonhos e ilusões, poemas até com veladas chantagens emocionais… inconformado por continuar vivendo com os eternos subterfúgios do Amor.
O Amor jamais deixou de lhe escrever. Um dia, na mais velada das metáforas, quase lhe confessava o desespero que morava em seu coração.
“Tento, mais uma vez, escrever… Apenas tento…
Sinto, de antemão, que ainda não será esta a hora, porque nada vem. Acho que enquanto não conversarmos como deva ser conversado, nada mais poderá ser escrito.
Estou em um deserto, com muita areia e muito vento incomodando. E é noite neste deserto. Noite sem estrelas. E eu estou sem bússola. Não poderia, assim, jamais encontrar o rumo. Jamais.
Tenho que esperar o clarear do dia. Para enxergar o caminho. Tenho que esperar que o vento cesse. Para que não nos fustigue mais com esse seu açoitar contínuo, incessante. Esperar que estas areias fiquem calmas, quietas, que não mais se infiltrem em meu corpo, tamponando poros, vedando o meu respirar, sufocando a vida. Esperar que alguém traga-me uma bússola, porque outras noites sem estrelas virão e a caminhada deverá ser contínua depois de iniciada.
E tudo isto só será sentido depois desse diálogo amigo, impossível agora. Depois dessa conversa, ao pé do fogo, em câmara lenta. Tu sabes que esse dia virá mesmo. Por que e para que, então não abreviares este espaço? Tenho certeza que, depois, seremos livres. Livres para novamente voarmos e atingirmos outros mundos, outras galáxias, livres para escrever, ler, contar, ouvir; e sonhar, certamente.
Nada pode ser escrito e tudo poderia. Tudo poderá ser dito, mesmo que doa. E eu sei que muita coisa irá doer. Ferir. Magoar. Mas o que é este pouco e passageiro ferir, em comparação ao imenso já sofrido e ao muito ainda de sofrimento que virá se não houver este cessar de imediato?
Espero que seja aqui e agora, para que não se espere muito. Espero que consigas romper mais algumas barreiras, ainda, e venhas para o frescor de um diálogo amigo. Que venhas enquanto estamos todos aqui. Enquanto é dia, enquanto não venta. Enquanto as areias do deserto não nos fustigarem. Enquanto tivermos bússola, enquanto houver prenúncio de noites claras e cheias de estrelas.
E se nada disso houver, creio que ainda haverá a presença amiga dos amigos. E depois de tudo, depois das brasas queimarem e arderem, depois disso tudo, ainda estaremos mais aptos, todos nós, para mais outra caminhada. Enquanto houver luz, enquanto brilharem as estrelas nas noites de todos nós, enquanto arder a chama da amizade, sempre estaremos sentindo apoio para os nossos pés cansados, sempre encontraremos o muro para derramarmos as lágrimas de nossas lamentações.”
Já mais de um ano se passara e o Amor incólume, aumentando barreiras. Até o dia em que, mesmo contra todas as suas enraizadas convicções e convenções, muito tempo depois, sob a luz de um luar que inundava de luz um pontilhão perdido na floresta, ouvindo o murmúrio do regato a correr incólume sobre as pedras, os dois amores uniram suas mãos. Foi o primeiro toque físico que arrepiou a ambos desde o começo do começo desta amizade, nas eras do agora.
Novamente, o tempo sumiu nas entranhas da terra. O Amor-Poeta distanciou-se uma vez mais. Conhecia demais a alma amiga e entendeu que as suas angústias e os seus desejos deveriam ser jogados em penhascos profundos.
Novamente, apenas vozes murmuradas, em telefonemas de longas distâncias. Novamente, cartas cheias de ternura de um lado e de apelos desesperados de outro corriam pelas estradas de uma vila para outra.
Um novo janeiro chegou. Com seu calor e suas estrelas cadentes. E sobre o velho pontilhão, perdido em meio à mata, trocaram um primeiro e ardente beijo de amor.
E uma vez mais o Amor correu do encontro definitivo. Lutava contra o que achava ser o certo, embora a paixão já o corroesse por inteiro. Evaporava-se à simples menção de um novo encontro. Não adiantava falar de amor para o seu Amor-Poeta. Porque o Amor-Poeta só achava que o Amor amava apenas as suas líricas poesias. Que o Amor só o amava pelos líricos poemas que pelas cartas transbordavam.
Tentava, desesperadamente, fugir do que lhe dizia o coração. Tentava, numa busca incessante, ver a razão sobrepujar o enternecimento que tumultuava seu espírito. Mas em meio aos escritos que enviava ao seu Amor-Poeta, deixava as tumultuosas ondas interiores levarem as internas águas para a superfície.
“Como secar essas lágrimas que afloram fáceis? Como? A lágrima vem com qualquer som, com qualquer música … Tudo evoca em mim uma saudade imensa, uma tristeza imensa. Tudo. A estrela que eu vejo. E a estrela que as nuvens não nos deixam ver. A lua enluarando. E a lua escondida no cinza da noite. O pássaro que canta em minha janela. E o pássaro que não vem porque chove. A música sinfônica faz-me chorar a alma. E um choro do Pixinguinha a entristece ainda mais. Um violino na Berceuse de Brahms e um “Sonho Meu”*, com Gal e Bethânia, ouvido tantas vezes, tantas vezes, evocando para ir buscar quem mora longe.”
Em outros parágrafos esparsos o Amor-Poeta pinçou frases que fizeram amortecer o pânico e a insegurança de um amor que imaginava impossível.
“Esta sensibilidade total assim, eu não tenho lembrança de ter sentido jamais.”
“As lágrimas afloram fáceis; são invisíveis, quando consigo retê-las. Mas lá dentro elas até são róseas, porque dilaceram e sangram.”
“E agora voltas aos teus pagos do sul. Ao teu vento andarilho. Ao teu Rodeio de Ventos. Que não seja um vendaval. Céus, que não seja um vendaval”.
“Eu não quero ver meus devaneios dilacerados por um impulso que não cabe dentro de mim. Por um impulso que me agrediria até para além das fronteiras da alma, para além das próximas vidas.”
“Quero que continues escrevendo para mim. Sabes os porquês. Eu preciso. É o meu pão.”
“… e tu? Voltarás a teu tempo, a teus tempos, às tuas formas e cores antigas?”
“… mas que deixou um rastro imenso, de muitos dias, de muitas noites, de infindáveis horas felizes minhas, na expectativa de saber-te de alma nova, de saber-te de alma fresca e refrescante, de saber-te abrigo, enfim, para mim, que também preciso de tetos, que também preciso de ninhos.”
“Porque será uma saudade rasgante.”
“Queres a libertação para as tuas andanças que te parecem tão necessárias como o ar que respiras.”
“Eu sinto lágrimas porejando em cada célula.”
“De uma coisa podes ter certeza: em momento algum eu tentei ou quis te magoar.”
“Tentei, sim, tentei inúmeras vezes, em múltiplas cartas querer até te carregar no colo.”
” Eu te amo muito. Sabes, tu sabes que eu te amo muito.”
E o Amor-Poeta chorou quando estas palavras chegaram aos seus olhos e se transformaram em luz e esperança. Porque, embora o Amor negasse, nas estrelinhas escrito estava, tudo o que em sua alma se passava.
E ficou contando os dias, aos poucos “… até que chegue a hora do… e foram felizes para sempre.”
Não sei chegou “… a hora do… e foram felizes para sempre.” Mas chegou o dia em que todas as convenções foram enterradas. E viveram então muitas horas felizes, carregadas de amor, embora enfrentando tempos tumultuosos.
Foram poucos os dias em que tiveram momentos de enlevo, cavalgando sobre nuvens branquinhas, através do infinito azul.
Quando não eram as distâncias físicas a separá-los, separados ficavam pela distância social, pela distância dos tabus da incompreensão, pela distância de um mundo que jamais conseguiria alcançar a dimensão de um Amor.
Até o dia em que o coração do Amor-Poeta já não aguentou mais as angústias da vida. E alçou um precoce voo para o além. Como uma gaivota…que saíra a voar, voar em rumo de um longínquo horizonte, tornando-se a cada minuto mais translúcida, até sumir no instante do alvorecer, em que o sol a iluminou por inteiro, envolvendo-a com seu manto de luz dourada…
E o Amor, uma vez mais, sozinho ficou. Com as lembranças e a saudade…
E como dizia o poeta:
“…o cisne que ficou nunca mais amou e nunca mais nadou ao lado de outro cisne!”
*”Sonho Meu”, Música de Dona Ivone Lara, em parceria com Délcio Carvalho, gravada em 1978, por Gal Costa e Maria Bethania.