Adair Dittrich comenta o novo livro de Pedro Penteado do Prado
Era uma pequena cidade. Carregada de histórias de heróis. Era uma pequena cidade onde o sangue de muitos jorrara em vão. Onde o sangue de muitos marcou a poeira. Marcas de sangue, que nem mesmo as águas das chuvas que por lá correram, em mais de uma centena de anos, conseguiram lavar.
Era uma pequena cidade onde vivia um menino. Rodeado de muitos meninos. E o menino sonhava. Era um menino cheio de ideias. E de ideais. Um menino aprontador.
Um dia o menino viu, bem de perto, um avião de verdade. E dentro dele entrou. Mexeu em seus comandos. Manuseou o manche. Engravidou seus olhos e sua mente com todos aqueles relógios de ponteiros encantados. Parecia-lhe que as reluzentes hastes do altímetro, do velocímetro, da bússola e outros mais só para ele sorriam naquela noite de realizações.
O sonho tornou-se seu companheiro em todos os momentos de vigília. E o acompanhava universo afora quando suas pálpebras cansadas o separavam do mundo real.
Na escuridão da noite o menino desenhava o seu sonho. Traçava riscos em seu velho caderno de desenho, montando a imagem da nave onde sonhava voar. Traçava seus riscos no velho caderno de desenho, apenas iluminado pela tênue chama de um lampião a querosene. Pela chama amarelada que acesa teimava ainda no topo de um pavio embebido pelas últimas gotas do precioso combustível. Do precioso líquido, amigo das noites de uma cidade onde a energia elétrica não havia chegado até então.
Precisava colocar no papel, corretamente, nas devidas proporções, com todos os detalhes, tudo aquilo que a sua memória gravara da investida noturna, em que, às escondidas, vislumbrara todo o interior da máquina voadora.
Correr as páginas do mais novo livro do escritor Pedro Penteado do Prado, é correr, com ele e seus amigos de outrora, através de muitos parágrafos, atrás de todos os componentes para a construção de um aeroplano. De um aeroplano que comportasse até uma cabine onde um menino-piloto conseguisse se acomodar. De um aeroplano de verdade. De um aeroplano que voasse.
De acordo com o desenho, projeto do menino de cabelo arrepiado, a obra foi, passo a passo, sendo executada.
São peripécias mil que se desenrolam, em minúcias, desde a queda de um pequeno avião perto de um campo de futebol, onde a gurizada fazia as suas peladas diárias, até o panorâmico e inesquecível voo da aeronave fabricada pelos meninos da vila de Santo Antonio do Trombudo.
São múltiplas as horas e os sustos até o encontro de todo o material necessário, para a construção do pequeno pássaro, entre as geringonças,que cada um descobrisse, jogadas pelos sótãos e porões de suas casas.
São verdadeiras apoteoses os desfiles dos veículos do espaço pelas ruas da cidade. O primeiro desfile, o do original, o que caíra perto do campo de futebol onde os meninos jogavam bola. Que, solenemente, sobre a carroceria de um caminhão, em procissão passou.
A descrição de Pedro Penteado leva-nos à Lebon Regis de então onde chegamos a ouvir todos os comentários das pessoas nas janelas e portas do velho casario. E a vê-los, com seus trajes e seus chapéus, seus trejeitos, seus bules de café, suas chaleiras de água fervendo e suas cuias de chimarrão.
E depois, muitos dias depois, vemos passar, pelas ruas, o aeroplano que os meninos construíram. Aeroplano feito com ripas, pedaços de velhos brinquedos guardados, taquaras, uma velha lona de caminhão e muito empenho. Tudo decalcado, minuciosamente, milimetricamente, no desenho do menino Pedrinho, que, exímio desenhista é desde que nasceu.
Entre as duas procissões, histórias, vividas pelos moleques, afloram na imaginação. Histórias vividas no entorno e na cidade que já fora Santo Antônio do Trombudo e que teve de engolir, a contragosto, a mudança de seu nome para homenagear o tirano chamado Gustavo Lebon Regis.
“Nome de um oficial comandante das tropas do governo, que tinha chegado até ali nos idos da Guerra dos Jagunços, para dizimar a população cabocla.
E haviam dizimado mesmo.
Chegaram a queimar milhares de corpos dos caboclos revoltosos que tinham sido assassinados por se rebelarem, após serem expulsos da terra onde nasceram!
Trocar o nome da cidade para homenagear um homem desses?
O mesmo homem que assassinou nossos antepassados?
Não admitiam a troca.
Quando muito, falavam Lebon…
Mais para o interior do município, a pronúncia não passava de um ligeiro “Bãorege…”
O nome da cidade mesmo era Santo Antônio do Trombudo!”(*)
“O Pássaro Abatido” é o sétimo livro, publicado, de Pedro Penteado do Prado. Brilhante professor de Química, dirigiu suas primeiras letras, exatamente, em direção ao que melhor sabia fazer: ensinar Química. Então saiu “Química Mágica – a Experimentação”, livro que reúne uma série de experiências que abrange todo o ensino fundamental. Seguiram-se a este “Química Geral”, “Físico – Química” e “Química Orgânica”, três compêndios que visam facilitar as aulas de Química da 1ª. 2ª. e 3ª. Séries do Ensino Médio.
Foi então que Pedrinho, o menino de cabelo arrepiado, o menino que sonhava voar, ousou descrever, meio século depois, em “Mácula”, as agruras pelas quais passou, quando foi preso e torturado nos porões da ditadura, aquele terrível período cinzento, de nossa história atual.
E entre este e o atual publicou a primeira parte de “Contestado: que o povo fique com a história”. Muito honrada fiquei em ter sido convidada, pelo autor, para escrever o texto inserido na contracapa da saga de Zorico Tamanqueiro.
Ansiosa aguardo as linhas finais das aventuras deste intrépido caboclo do Contestado.
(*) Trecho de “O Pássaro Abatido”.