Paris: a despedida

Leia nova coluna de Adair Dittrich                                                                                                                         

 

Não poderíamos deixar Paris sem que fizéssemos um passeio a pé pelas ruas e jardins, pelos cafés e bulevares por onde intelectuais e filósofos, artistas e boêmios jogaram suas palavras aos ventos. Aos ventos que ao mundo as levaram.

Quartier Latin
Quartier Latin

Mesmo que poucas horas restassem até o instante de tomarmos nosso comboio para Le Havre muitos passos poderiam ainda ser dados dentro do Quartier Latin e no âmago de Saint Germain de Pres.

Não, desta vez não foi em um bistrô que almoçamos. Passando defronte a tantas boulangeries, as tradicionais padarias com seus inefáveis aromas que o inevitável a minha frente se delineou. E assim munida daquela pequena garrafa de um quarto de um branco francês de boa safra, mais a inseparável não alcoólica bebida de minha amiga, líquidos que acompanhariam as baguetes com exuberantes fatias de presunto e do legítimo emental, nos bancos de um jardim nos acomodamos para um almoço dominical de despedida de Paris. Que pensávamos ser nosso último almoço em Paris.

Muito a se ver e muito a se admirar neste nosso caminhar pela tarde ainda que brumosa, ainda que com um céu carregado de escuras nuvens, neste território encantado que em minha mente habitava já há tantos anos.

Saber que pisávamos nas mesmas calçadas que sentiram os passos de Sartre, Simone de Beauvoir, Victor Hugo, Hemingway, Françoise Sagan, Picasso, sem falar no incontável número de atores, atrizes e diretores de cinema e de teatro.

São inúmeros cafés e bistrôs, boutiques e livrarias, sebos e teatros, museus e restaurantes com um constante ir e vir de filósofos, estudantes, escritores e artistas que do mundo todo para lá são atraídos.

Olhar para a fachada tão cantada em livros, tantas vezes em filmes mostrada, do famoso café “Les deux magots” foi para mim a parte das lágrimas incontidas.

Igreja de Saint German
Igreja de Saint German

No momento em que estávamos admirando o interior da igreja que foi erguida em honra a Saint Germain, palavras quase sussurradas em nossa língua aos nossos ouvidos chegaram. Eram dois oficiais da marinha que usufruíam de sua folga em rápida corrida até Paris. Ao nosso lado continuaram a caminhar por todo aquele instigante bairro.

Quando se aproximava a hora de o nosso comboio tomarmos eles conosco continuaram ainda em animada conversa. Em um café na estação ferroviária fizemos nosso último lanche.

Faltando, talvez, uns trinta minutos para a hora de nossa partida nós nos dirigimos ao espaço onde estavam localizados os guarda-volumes. Da ponta do corredor algo anormal com as portinholas dos cubículos onde as bagagens deveriam estar acomodadas eu já estava a perceber. Empurradas em direção ao seu interior pelo lado das dobradiças elas se encontravam. E o espanto inicial não apenas em susto, mas em algo muito superior a uma decepção se transformou. Ao se puxar a portinhola para fora um espaço vazio foi o cenário a nossa frente. Era o guarda-volumes onde minha amiga Jucy colocara o carrinho com sua mala e a sua mochila. Completamente limpo. O dela ficava na fila ao rés do chão. O meu ficava um pouco mais acima. Mas o suspiro de alívio por encontrar o meu intocado não aliviou a nossa angústia.

Nosso comboio logo partiria. Mas Jucy estava inconformada. Carregada de esperanças de que sua preciosa bagagem pudesse ser recuperada só pedia que eu falasse com o agente da estação. E foi então que uma nova romaria teve início. O agente levou-nos à gendarmaria da gare. Porque um boletim de ocorrências precisaria ser providenciado. Minha amiga não conseguia articular palavra. Tudo o que com tanto carinho comprara para os seus sumira. Tudo o que comprara para ela em todos os locais por onde andáramos desaparecera.

O alívio era saber que nossas bolsas de mão não eram meras bolsas, mas quase umas frasqueiras que a tiracolo portávamos. E muita coisa valiosa ela levava ali consigo.

Preciso era explicar em detalhes o conteúdo da bagagem dela aos oficiais da polícia ali sediada. Tudo era importante. Mas mais importante que tudo nesta hora era uma cópia daquele boletim para ser apresentado na companhia aérea. Pois nossas passagens na mala de Jucy guardadas estavam. Naquele tempo de nada adiantava ter seu nome na lista de passageiros. Se não se estivesse com o bilhete na mão só se embarcaria adquirindo nova passagem. Aqueles papéis dentro de um encarte eram quase como um cheque em branco. Porque quem ousou roubar fácil também poderia improvisar falsos documentos com nossos nomes.

Claro que nossa viagem fora remarcada para o dia seguinte. E Jucy sempre na esperança. Mesmo após os policiais franceses e o pessoal da gare nos alertar da impossibilidade de que os assaltantes fossem encontrados. Inúmeros trens e metrôs daquele ponto já haviam partido naquele dia. Agulha em palheiro seria mais fácil ser encontrada.

Enquanto estávamos envolvidas com esta parte burocrática nossos novos amigos pegaram minha bagagem e a levaram para outro tipo de guarda-volumes, com seguro e com tíquete nominal para retirada. Além de terem conseguido reservar acomodações para nós duas no mesmo hotel em que eles estavam.

Como apenas um rápido lanche havíamos feito fomos desta vez a um restaurante jantar. E minha amiga até tomou uma taça de vinho a fim de relaxar as tensões e enterrar as frustrações que a dominavam.

Marselha
Marselha

Na manhã seguinte nossos amigos retornaram a Marselha onde o navio deles estava fundeado. E nós fomos fazer uma última tentativa junto ao Consulado do Brasil onde contamos de nosso infortúnio e ver no que poderíamos ser ajudadas.

Claro que, delicadamente, nos disseram que pediriam que a Polícia Francesa desse maior ênfase nas buscas…

Outra providência inadiável e imediata. Ir em busca de uma agência da Varig. Aonde fomos muito bem recebidas. Deixamos uma cópia do Boletim de Ocorrência com eles para que outro bilhete de viagem fosse emitido. Com alívio recebemos a comunicação de que as passagens roubadas canceladas já estavam e que eles comunicariam, por telefone, à agência de Londres para que lá outras nos fossem fornecidas. Parece estranho falar destas dificuldades aos que sempre a tudo olharam pelo prisma da internet. Mas era assim que se fazia apenas há trinta anos.

caf]ePor todas estas peripécias que passamos tivemos mais um dia em Paris. E um pedaço dele fomos passar nas calçadas de um café na Champs Elysées, onde entre apetitosos canapés recheados do mais puro queijo francês e uma taça de vinho nacional muitas gargalhadas demos vendo os eternos palhaços de bolinhas vermelhas grudadas no nariz imitando os transeuntes que apressados se dirigiam a seus afazeres. Ou a vagarosas turistas de olhares perdidos nas vitrines de bolsas e calçados do outro lado da avenida.

Andamos muito ainda naquela tarde que ensolarada já estava. Mais monumentos em nosso caminho pelas ruas. Retornamos a Saint Germain de Pres para o nosso adeus a Paris.

Quando o entardecer chegou estávamos dentro do comboio que nos deixou no porto de Le Havre. Desembarcamos numa estação bem ao lado do cais para onde fomos levadas quase de imediato. Nosso navio partiria naquela noite rumo a Portsmouth, na Inglaterra. Mas, algumas formalidades aduaneiras eram indispensáveis. Deixávamos a França.

Enquanto na fila estávamos para o devido carimbo em nossos passaportes percebi que estava sem a minha sacola de chapéus. E agora? Queria retornar ao trem para ir buscá-la. Eu a havia colocado num local destinado à bagagem de mão situado acima das poltronas. E lá ficara. Desiludiram-me da empreitada, pois o comboio já estava em manobras. Não houve muito tempo para lamentações, pois, logo um sorridente ferroviário que nos atendera ainda a bordo do trem veio em minha direção sacudindo minha sacola em suas mãos. E meus chapéus a viagem comigo continuaram.

Algum tempo depois já estávamos acomodadas no interior do navio. Sentimos seu suave balançar deixando que vislumbrássemos ao longe as luzes da costa francesa.

Deixávamos a França e o Continente Europeu. E dentro da noite, sobre as águas, o Canal da Mancha cruzamos.