Leia nova coluna de Adair Dittrich
O dia não havia clareado de todo quando embarcamos no trem que nos levaria até Colônia, na Alemanha. Seria um intenso dia de correrias.
Estávamos meio cochilando ainda, porque o espaço entre o dormir e o acordar fora curto, quando uma algazarra infantil nos chama para a vida. E foi algo impressionante mesmo. Porque, pela primeira vez em nossas andanças pela Europa, eu estava em frente a um bando de crianças. Eventualmente víamos uma ou outra, com seus pais ou babás, parecendo-nos, até, meio deslocadas ante a multidão de adultos.

Mas dentro do trem eram muitas, era uma multidão de felizes criaturinhas que, acompanhadas de algumas monitoras estavam a fazer um passeio até Colônia. O que, para elas, seria uma colônia de férias. E a alegria tomou conta de nosso comboio.
Era plena manhã, ainda, quando descemos do trem e logo encontramos a nossa amiga Ana.
Ana levou-nos a conhecer os famosos locais da grande e bela cidade que já tão conhecida minha me parecia. Cruzamos muitas ruas e avenidas admirando os diversos estilos arquitetônicos. E eu, pasma, ao redor olhando, com a nítida impressão de que aquilo tudo eu já conhecia, que por lá eu já estivera andando … Mas, era impressão, apenas.

E a Catedral de Colônia foi o mais importante local para onde Ana nos levou. Seu estilo gótico todo especial com as suas duas altíssimas torres é uma das imagens que em minha mente já existia.
Como esta catedral fora, em parte, destruída por múltiplos bombardeios aéreos no decorrer da Segunda Grande Guerra Mundial, imagens dela há muito haviam percorrido o mundo. Parte dela fora meticulosamente, restaurada. E uma parte restou com apenas um chamado reparo de emergência. Este reparo havia sido feito com tijolos das ruínas de outra construção destruída pelas bombas aéreas. Lá estava o reparo, visível e altaneiro, como uma recordação da guerra. Quando a Colônia retornei oito anos depois, esta parte já havia sido restaurada também e seguia a aparência original.
Continuávamos a percorrer a cidade e ao chegarmos à famosa Glockengasse, novamente, estática e intrigada eu paro em frente a um prédio. Até assustada fiquei afirmando para as minhas amigas que eu já conhecia aquele prédio. Que já o vira muitas vezes na vida.
Eu deveria conhecer, sim a imagem do edifício, com seu frontispício decorado em verde-azulado, negro e dourado. E aqueles quatro grandes algarismos em negro, envoltos pela perna ascendente de um ene (ene de número), no alto do portal avivaram-me a mente. Desde os longínquos anos de minha infância eu via aquela imagem em rótulos de uma perfumada água adornando penteadeiras e bancadas de antigos lavatórios pelas esquinas do mundo por onde eu andava. A imagem do rótulo da Água de Colônia 4711. A legítima, a conhecidíssima Água de Colônia.
Ali era o local onde ela era fabricada e vendida desde priscas eras. Aquele era o local do encanto. Extasiada, na loja entrei. O perfume, como reflexo condicionado em minha memória, impregnava o local. E viajei para recantos há muito não lembrados.
Ana levou-nos para almoçar em um fino restaurante de onde se descortinava uma bela visão das águas do Reno. E ela fez questão de me apresentar a um prato genuinamente típico da região renana. Uma iguaria em branco e preto. Que nada mais era senão um manjar preparado com uma negra salsicha e purê de batatas. Mas, com um sabor inigualável e inesquecível aroma. Uma inesquecível refeição preparada por um maître conhecedor profundo da arte culinária. Que nos explicou depois que, entre os segredos, o purê tinha uma mistura de castanhas europeias.
Pelas ruas de Colônia repetiam-se as pinturas que eu vira em Amsterdam. Pinturas que davam a sensação de uma terceira dimensão em pleno plano superficial por onde andávamos. Tive a impressão de que havia uma escada a minha frente. Naquele momento eu só não conseguia discernir se por ela eu subiria ou desceria …
Chegada era a hora de irmos para Ahrweiler, para a casa de Ana e Alberto. Nossas malas haviam, de Bruxelas, com eles retornado. E não só as malas, mas também um saco de roupas para serem lavadas e uma parafernália de objetos mil que foram sendo acrescentados à bagagem no decorrer de nossa aventura desde o Reno até o Sena.
Muito a se fazer então. Lavar, secar e passar nossas roupas. E, em grandes caixas, embalar o nosso excesso de bagagem e enviá-las para nossa casa, no Brasil, por via de superfície.
Mas Ana e Alberto não paravam de nos fazer surpresas. Encontramos nossas roupas limpas, passadas, dobradas e acomodadas sobre nossas malas.
Enquanto embalávamos nossas tralhas, um churrasco de despedida estava sendo preparado. Um churrasco diferente e muito saboroso feito de bem cortadas peças de carne suína temperadas pelo Chef Alberto. Que as assava em uma pequena churrasqueira de ferro fundido. E acompanhado por pães especiais. E por demais quitutes elaborados por Ana. E com mais uma gostosa cerveja da região acondicionada em garrafas providas de rolhas de cortiça. Rolhas que eram retiradas com a maior facilidade apenas ao se mover uma pequena alavanca de metal anexada.
E mais outra surpresa nos aguardava.
Repentinamente ela apareceu. Sorrindo para mim veio ao meu encontro e abraçamo-nos efusivamente. Ela, a grande dama da Ópera de Colônia. Ela, a famosa soprano brasileira que extasiava a Europa.

Maura Moreira ali estava, rindo e sorrindo, em mais um congraçamento brasileiro em terras germânicas.
Maura Moreira que se apresentara nos palcos de Belo Horizonte ao tempo em que Lia Salgado lá também cantava. As árias de Vila Lobos sempre foram o forte de Maura e ela se igualava em talento e voz e em notoriedade a Maria Lúcia Godoy.
Eu assistira a um concerto de Maura no Teatro Guaira, em Curitiba, levada por uma prima dela. Por minha grande amiga Maria Regina Bolivar Moreira de São Clemente e seu marido Geraldo.
E, naquela memorável e inesquecível noite em Ahrweiler, rememoramos o belo dia em que nos conhecemos. E Maura foi então contando de seus tempos em Belo Horizonte, onde, desde criança, cantava no coro das igrejas. Aperfeiçoou seu canto em conservatórios europeus.
Naquela noite ela nos disse que agora fazia parte apenas do Coro da Ópera de Colônia. Que seu tempo de prima-dona era passado.
Desolada com a extrema pobreza que vira no decorrer daquela turnê por sua terra natal, fundou, com amigos, em Colônia, a “Humanitas”. “Humanitas” é uma organização de voluntários que se propõe arrecadar os mais variados objetos usados ou não e dinheiro para enviar a hospitais e entidades filantrópicas do Brasil. E naquela noite muito da “Humanitas” ela nos contou.
Uma noite memorável na qual a minha efusão não tinha fim e a fusão de sentimentos extravasa por todos os meus poros.
Foi assim, envolta nesta aura, num misto de alegria e tristeza que nos encaminhamos a Colônia para tomarmos o trem. De alegria pelo reencontro com Maura Moreira. De tristeza por ser a nossa despedida de Ana e Alberto.
Em caravana levaram-nos à gare de Colônia. Já passava muito da meia-noite quando embarcamos no comboio que nos levaria a Munique onde um gentil garoto chamado Edmundo, filho de nossa amiga Fléride nos aguardaria.