Andarilhos da vida

Adair Dittrich escreve sobre personagens peculiares de Canoinhas                                                      

 

São variadas as personagens que por nossas terras perambularam. Dos mais variados estilos. Com seus maltrapilhos trajes encardidos e mal cheirosos.

 

 

Homens e mulheres que o mundo atirou pelos cantos. Sem rumo, sem norte, sem vida… Muitos sem saber de onde vieram. Acabaram por aqui. Acabaram… Ir para onde? Seguir para onde?

 

 

Tipos curiosos, alguns bem humorados, outros servindo de improvisados palhaços para os passantes.

 

 

Não me lembro do nome de muitos que, pelas ruas, eu vi passar. Que às nossas portas bateram, em busca de um prato de comida. Que percorriam a linha do trem em busca de algo perdido em um passado remoto onde um dia teriam sido felizes.

 

 

Lembro-me, bem, do Sagaiz. Que em cada entardecer chegava em nossa casa, no tempo em que morávamos na praça, onde minha mãe tinha uma loja, a Casa Barateira. Ele já sabia como entrar pela portinhola lateral e chegar até o rancho dos fundos.

 

 

O rancho onde ficava o poço. O rancho que era o depósito de lenha. Entre o rancho, a alta construção em cujo topo ficava a caixa de água e a escada de acesso à entrada dos fundos, em um pequeno espaço, calçado com tijolos vermelhos ficava postado o seu Sagaiz, na esperança de que percebêssemos a sua presença.

 

 

O que era muito fácil. Logo que um nauseabundo odor adentrava nossas narinas, sabíamos que o nosso comensal de quase todas as noites havia chegado. E o seu prato estava sempre pronto à sua espera.

 

 

Sagaiz sempre andava de paletó. Que parecia um jaquetão. Grande e muito escuro. Nunca se soube o tom da cor original de sua roupa. Creio que tinha a cor de um preto encardido, seboso e reluzente até. E o mais incrível. Sua camisa era social. E já fora branca em alguma época.

 

 

Nada de sua vida ele contava. Pouco me lembro do tom de sua voz. Calado sempre.

 

 

A função do Sagaiz lá em casa era a de partir lenha. O que, de vez em quando, fazia. Mas o que ele fazia mesmo era deixar, a cada dia, mais luzidio o cabo do machado.

 

 

De pasmar era o seu sorriso. Pois estava sempre rindo. Tinha dentes brancos e luzidios, contrastando com sua tez de uma coloração meio duvidosa. Porque camadas de sujeira acumulavam-se sobre sua pele que deveria ser amorenada.

 

 

Quando minha Nonna faleceu, retornamos para a nossa casa de Marcílio Dias, pois minha mãe precisaria tomar conta do restaurante da estação. E eu retornei ao internato do Sagrado Colégio. E nunca mais soube do senhor Sagaiz.

 

 

Núncia era outra criatura que pelas ruas de nossa cidade vivia a perambular. Sempre com seu vestido estampado com flores multicoloridas. Sempre com uma trouxa de roupa ás costas. Mas, o que a caracterizava mesmo era algo que me parecia ser uma pequena trouxa de pano. Não muito pequena. Que ela, altaneira, magistralmente equilibrava no alto de sua cabeça, quando, pelas ruas desfilava, com seu andar gingado e olhava o mundo do alto de suas tamancas de madeira.

 

 

Núncia não era freguesa assídua de nossa casa. Era eventual. E quando chegava, chegava no horário do almoço.

 

 

Mas, quem marcou profundamente em nossas vidas foi o velho Clemente, o seu Clemente. Com seus membros inferiores mutilados. Parece-me que, de um lado, tinha sido realizada uma amputação ao nível da coxa. E nem claudicar conseguia. Arrastava-se. Porque o outro membro, não sei se em parte fora amputado também ou eram sequelas de múltiplas mutilações ocorridas ao longo de sua vida de operário, em uma grande serraria.

 

 

Poucos trabalhadores das madeireiras daquelas épocas chegavam com o corpo ileso ao final de suas vidas. Ao primeiro golpe de azar em serviço, serviço mais nenhum encontravam. E restava apenas o rumo das ruas para mendigar.

 

 

Dependendo do trabalho que deviam executar, era difícil que alguém saísse sem um ferimento grave, sem a mutilação de membros, quando não era a própria vida a ser perdida.

 

 

Tanto na derrubada das árvores na mata, como depois, na retirada das toras dos caminhões pelos pátios das serrarias, eles deveriam ser mais hábeis que os mais hábeis malabaristas de circo, mais exímios na arte de saltar que os mais exímios atletas. Precisavam saber o momento exato de desatar as amarras e dar um fantástico salto à distância, a fim de não ficarem debaixo dos volumosos troncos de madeira de lei.

 

 

O equipamento de proteção individual usado era apenas a agilidade com que pudessem saltar o mais longe possível.

 

 

Os magnatas da época de ouro em que se cortavam exuberantes araucárias e magníficos espécimes de imbuias, com troncos de avantajados diâmetros, viam vidas sendo ceifadas, corpos sendo mutilados com a maior naturalidade, a mesma naturalidade com que o mundo via a revolução industrial.

 

 

Operários começavam sua labuta antes que o sol aparecesse no horizonte, e só largavam seus parcos e rústicos instrumentos de trabalho, bem depois que nem vislumbre dos raios solares pelos céus aparecessem.

 

 

A necessidade de levar o pão e a carne, o feijão e o arroz para o sustento dos seus, obrigava as pessoas a submeter-se a qualquer tipo de trabalho que surgisse. Era a lei e a ordem que então imperava.

 

 

Lembro-me das palavras que minha mãe e meu pai viviam a repetir.

 

 

“Quando não restam mais árvores de bom porte para serem cortadas e serradas, os capitães da indústria da madeira abarrotam seus caminhões com todo o seu maquinário, mudam para outras frentes, deixando atrás de si um morro de serragem e um monte de aleijados.”

 

 

E o seu Clemente, o nosso amigo seu Clemente era um sobrevivente desta época.

 

 

Estava sempre ali, na plataforminha do restaurante da estação de Marcílio Dias. Logo que os trens da manhã saíam, recebia um prato de comida quentinha que minha mãe providenciava para ele. Mas seu Clemente fazia questão de pagar o alimento que o sustentava. Com o seu trabalho.

 

 

Ao lado do restaurante tinha um rancho também. E no rancho a pilha de lenha já serrada e ou por serrar. Seu Clemente arrastava-se até lá. Sim, arrastava-se. Como ele andaria? Em um toco mais avantajado ele se acomodava. Sobre outro, colocava um grosso pau de lenha e com um machadinho de cabo curto ia picando a lenha, acha por acha. Ao entardecer já havia lenha devidamente cortada para ser queimada por mais de um dia no grande fogão do restaurante. Um fogão que mantinha seu fogo aceso desde quase a madrugada até a hora em que as portas da cozinha se fechassem, até que tudo se acomodasse depois que o último trem da noite tivesse partido, até depois que todos os remanescentes tivessem jantado, até depois que toda a parafernália usada no decorrer do dia estivesse limpa e guardada em seus devidos lugares.

 

 

Seu Clemente ganhava ainda um café reforçado à tarde e um prato na hora do jantar. Mas, era pago, religiosamente, em moeda corrente, pelas horas em que lá ficou, no seu banquinho improvisado,partindo achas de lenha atrás de achas de lenha.

 

 

Seu Clemente usava roupas velhas de brim. Gastas, sim, mas sempre limpas. Conversava bem e contava muitos causos. Parecia ser homem que viera de tempos melhores e a que a fatalidade na busca do pão para o seus o relegou a alguém que necessitava arrastar-se pela vida na luta pela sobrevivência.