Leia a crônica da semana de Adair Dittrich
A noite era um silêncio só. Soturna companheira dos que, no envolver da hora, cobrem-se com folhas de papel, como se fossem mantos, empunham canetas como se fossem espadas e partem em busca de desconhecidos mundos.
Quase em surdina, ao fundo, o dedilhar de um piano. Apenas para que sentisse algo além do ar para preencher o espaço vazio em seu redor. Para que outro som chegasse até sua alma além do suave crepitar das labaredas da lareira que de calor enchia sua salinha.
Na sala ao lado o grande relógio já fizera soar o carrilhão quando seus ponteiros se uniram para a última prece do dia. Para avisar que já era madrugada.
Há muito a lua sumira envolta que fora por grossas e negras nuvens. A claridade dos relâmpagos substituía o clarão do luar. O ribombar dos trovões nos longes soavam. O cadenciado e quase sussurrante rumor da chuva, batendo na calçada, amalgamado ao som do teclado do piano que ouvia, fê-la mergulhar para dentro de si.
Debruçada sobre os finos retângulos coloridos onde rabiscava seus poemas quase não percebeu outro som que, na distância, avolumava-se lentamente. Parecia um contínuo rugido ao longe, na lama da estrada. Até transformar-se em ruído de motor de um carro à medida que se aproximava.
E um clarão pelas janelas da velha salinha entra. O silêncio e a escuridão retornam. Um bater de portas de carro que se abrem e se fecham a faz levantar-se.
Ouve passos apressados na calçada cheia de poças de água. Depois, na varanda que circunda a casa. Na luz que se irradia através do retângulo da porta ela a vê, em prantos, chegando, molhada e fria, dentro da madrugada. Molhada a face da enxurrada de lágrimas que de seus olhos vertiam. Molhadas as vestes da enxurrada das águas que do céu vertiam. E a alma encharcada de mágoas.
Ao abraçá-la sente em seu corpo a convulsão dos soluços incoercíveis. Trazia nas mãos uma cesta repleta de saudade e uma mala repleta de lembranças. E a alma encharcada de mágoas. Nada falou e nada ouviu. Porque palavras entre elas não eram necessárias.
Gélidas as mãos e gélida a face. Levou-a até a salinha aquecida. E em soluços continuou a amiga derramando-se sobre uma poltrona. Sobre a mesinha atirou seus pertences. Seus pedaços de saudade. Seus esgares de lembranças. As mágoas que toldavam sua alma. Recusou a macia toalha que secaria suas mãos e sua face.
Recusou o chá que aqueceria seu corpo. Recusou o vinho que aqueceria sua alma. Porque ela sabia que o calor humano que fluía pelos olhos da amiga em breve a aqueceriam.
Deixou-se ficar empilhada entre as suas dores por longo, longo tempo, naquela poltrona aquecida de amor. A amiga, em frente a ela, debridando seus pedaços.
Até o silêncio findar, até os soluços diminuírem, até poucas lágrimas restarem, longos minutos foram correndo. E então as palavras foram saindo, de mansinho, doridas, maltrapilhas palavras a contar das dores que em sua alma estavam morando.
Um dia, há muito tempo, a amiga se fora, feliz e radiante, ao encontro de seu grande amor. Pouco dela soubera desde então. E agora em frangalhos retorna. Carregada de saudades, de lembranças e de mágoas.
Não era uma longa história, mas era a história de um amor já impossível. De um amor que o tempo dilacerou. De um amor…
– Ciúme, foi o ciúme, que rompeu este amor. E a mais ninguém eu contaria esta tragédia que desabou sobre o meu mundo que era tão lindo. O ciúme foi solapando o nosso amor. Foi soterrando o nosso amor.
Aos poucos, num crescendo, crescendo a cada dia… e eu nem percebia. Eram tênues perguntas que, para a minha ingenuidade, não tinham razão de ser. Eram pequenas frases sobre a minha postura, sobre as minhas risadas, sobre o meu bom humor…
Não havia brigas. Insinuações apenas. Leves insinuações. Jamais eu pensaria que um dia as coisas chegassem ao fim. Sem brigas e sem discussões. Porque o envolvimento nosso era grande e era lindo.
Ninguém podia olhar-me com um sorriso amigo que a tempestade do silêncio começava. Pior que palavras rudes, pior que uma discussão, pior até que uma bofetada, era o silêncio… um silêncio de pedra…
Para alguém como eu, que sempre vivi rodeada de pessoas, ter de ficar explicando o óbvio? A tentativa de evitar estes silêncios tumulares começou a tornar-se um calvário. Não, não começou de repente. Foram meses. Foram anos. E este convívio não poliu nossas arestas. Mas, nós nos amávamos. E isto era o mais importante, o que bastava.
Não, não era uma disputa pela dominância. Nós nos entendíamos tão bem. Cada qual em seu trabalho, em suas lides. Até o tempo que tínhamos para uma vida em comum era escasso. Plantões nos separavam, muitas vezes, até em fins de semana. Mas o convívio nosso era uma festa… caso ninguém estivesse por perto… porque então vinham as insinuações… vinham os por quês… vinham os mutismos que me exasperavam.
O clímax aconteceu em um aconchegante barzinho onde fomos, com amigos, por insistência minha, comemorar o nosso aniversário. Pessoas, não conhecidas minhas, olhavam-me muito. Até demais. Insistentemente. Foi quando alguém, de exuberante beleza e carisma chega ao nosso lado e cumprimenta-me efusivamente. Não soube dizer quem era. Não conhecia aquela pessoa. Jamais a tinha visto. Apenas sorri.
Foi horrível o teatro que o meu amor encenou. Levantou-se inopinadamente. Puxou-me pelo braço. Quase nem consegui pegar minha bolsa. Jogou umas notas em cima da mesinha para pagar nossa conta. Quase me arrastou para longe dali. E ao tomarmos o carro saímos em desabalada corrida pela noite paulistana.
Com vagar desfiz meus laços. Porque agora o silêncio e o mutismo, creio, permaneceriam para sempre. E assim eu não conseguiria viver. Embora o amor ainda permaneça, eu tenho certeza de que logo morreria naquele convívio doentio. E o passar do tempo, tenho certeza, fará com que apenas fique como paisagem envolta na neblina.
Com vagar desfiz meus laços. E corri por águas revoltas até onde eu sabia que encontraria uma lareira onde eu pudesse queimar esta cesta repleta de saudades, esta mala repleta de lembranças e enxugar esta alma encharcada de mágoas.