Resistir é preciso…

Adair Dittrich segue contando o drama de sua experiência com a ditadura

 

 

No dia anterior ao meu embarque rumo à cidade de Salvador, na Bahia, onde eu participaria de um Congresso Brasileiro de Anestesiologia o oficial-carcereiro-do-dia, ao incumbir-me da tarefa de efetuar as compras no supermercado pela chefia indicado, com a maior gentileza explicou-me em qual guarita eu deveria efetuar a entrega. Nas mãos dele o enorme volume eu deixei. Garantiu-me que, naquele mesmo local, o que estava faltando da longa lista seria recebido pelo oficial do dia seguinte.

 

 

E algo mais com o gentil oficial-carcereiro naquele dia ficou combinado. Que quando da Bahia eu retornasse, poderia, novamente, visitar meu irmão e com ele conversar até por um tempo mais longo. Deu-me o seu cartão de visitas no qual assinalou o número para o qual eu deveria telefonar logo que a São Paulo eu chegasse.

 

 

Então, no dia da ida a Salvador, primeiramente pelo Doi-Codi eu passei a fim de entregar mais dois enormes pacotes com objetos que deveriam ser entregues a meu mano.

 

 

Na mesma guarita da véspera, no mesmo local adrede combinado, na hora aprazada lá estava eu entrando com os dois pacotes sob meus braços. O motorista do táxi ajudou-me até o portal de entrada, onde foi barrado. E eu… ao explicar o motivo de minha presença ali fui informada que de nada o sargento-porteiro sabia. Insisti. Expliquei. Uma extensa ladainha de porquês.

 

 

Eis que chega o oficial do dia. Do alto de sua arrogância empurra-me de encontro à porta de saída. Resisti. Tentei explicar que apenas trazia roupas e objetos de uso pessoal do prisioneiro político Aldo Pedro Dittrich. As faces do militar ficaram rubras. Era o vermelho do sangue que de seu fígado raivoso ao seu rosto subira.

 

 

Tentei colocar em suas mãos a encomenda. Foi então que o mundo ruiu aos meus pés. Os pacotes foram ao chão. E os meus pulsos foram retorcidos. Por ele, pelo sargento-ajudante e ainda chamaram mais dois praças com o intuito de me algemarem. Um deles tinha uma canetinha tipo Bic, nas mãos. Não só minha roupa com ela ficou riscada, como rasgada também. Com ela não só meus braços ficaram marcados, como cortados também. Um filete vermelho da ferida aberta começou a escorrer. Estava eu ali naquele território exíguo, de talvez quatro metros quadrados, rodeada por quatro homens fardados e armados.

 

 

Devido à demora em resolverem a situação tentei explicar que eu iria perder o meu voo. E foi então que a ameaça, a tonitruante ameaça desabou sobre mim. Que eu não perderia somente aquele voo, mas todos os voos daquele dia, os do dia seguinte, os da semana e os do mês seguinte também…

 

 

Sim, eu ficaria por lá enclausurada… Lembro-me, vagamente, debaixo daquela obnubilação que me obstruía a mente de algumas palavras mais amenas com as quais o sargento tentava, quase em vão, fazer com que o oficial retornasse à razão.

 

 

Larguei os temíveis volumes que, talvez, segundo eles, poderia fazer com que o enorme conjunto de construções que compunham o temível recinto das torturas, fosse pelos ares. Conclusão única a que cheguei ao ver tanta resistência em receber dois embrulhos, antecipadamente registrados para lá serem entregues…

 

 

Saí de lá, apressadamente, logo que o sargento conseguiu amenizar a situação. O táxi não se encontrava mais no local onde me deixara. Gelei. E agora? La estavam minhas malas, minha bolsa, as passagens aéreas… tudo o que eu precisava para continuar a viagem.

 

 

Foi então que ouvi o som de uma buzina, uns cinquenta metros abaixo e o simpático taxista do lado de fora, abanando os braços. Fora, gentilmente, solicitado pela guarda militar da guarita, para que ficasse do outro lado da rua e o mais distante possível da fachada do quartel…

 

 

Com os pensamentos a mil sou recebida pelos colegas em Salvador. Levam-me ao hotel onde eu ficaria hospedada, hotel-sede do congresso. Instalam-me no apartamento que constava já da reserva há meses efetuada. Coloco minhas roupas nos cabides e as guardo no armário. Deixo todo o meu material de toalete, de higiene, de maquiagem organizado no banheiro. Tento telefonar para meu outro mano, Adolpho Ariel, o Fito, que trabalhava na Petrobrás. Aparelho mudo.

 

 

Subitamente vem ao meu apartamento o gerente do hotel. Lembro-me de sua fisionomia meio sem graça, de suas palavras meio tartamudeadas, pedindo desculpas, que fora um lapso, que aquele não era o aposento que me fora destinado… Que logo me transfeririam para outro. Mais confortável, até. Que o pessoal do hotel me ajudaria a levar minha bagagem para o novo local, tão logo ele ficasse pronto…

 

 

Claro, ficasse pronto… com as devidas ligações, com os devidos pontos de escuta… enfim com aquela parafernália toda… Fiz-me de boba. E apenas coisas inconsequentes no telefone do novo aposento eu falava…

 

 

No decorrer de todos os dias figuras nada conhecidas no meio anestesiológico vagavam pelas salas de conferências, de temas livres, de palestras, e, principalmente no grande auditório onde foi realizada a nossa grande Assembleia anual de Delegados. Onde fotografados, fila por fila, de frente para trás, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, todos os que dela participaram. Assembleia de Delegados da Sociedade Brasileira de Anestesiologia, da qual não participei. Por motivos óbvios dela fui uma ausente…

 

 

Findo o congresso, no dia e hora marcados desembarco em São Paulo. E telefono para o oficial-carcereiro que me dera seu cartão de visitas. Feliz em poder, uma vez, mais conversar com meu mano Aldo.

 

 

A lacônica resposta não se fez esperar. Apenas duas palavras: “Não pode”. Por mais que eu insistisse a mesma resposta eu recebia. Nada mais me restou fazer a não ser antecipar meu voo para Curitiba e para minha casa voltar.

 

 

No dia seguinte a notícia que a televisão, os jornais e as rádios nos trouxeram. Herzog, Vladimir Herzog, o jornalista Vladimir Herzog fora suicidado nas dependências do Doi-Codi, talvez momentos antes de eu para lá telefonar. Era o dia 25 de outubro de 1975.

 

 

Algo nos céus do Brasil então sucedeu. Os anjos de meu mano Aldo e de outros prisioneiros políticos mais tiveram permissão para chegar mais perto da terra. Aldo escrevia palestras que o seu carcereiro proferiria para entusiásticas plateias. Aldo redigia textos que outros oficiais publicavam, em nome deles, nos jornais e revistas da vida.

 

 

Até o dia em que outro anjo falou com o ditador de plantão e na véspera de Natal daquele mesmo ano meu irmão Aldo foi o presente maior que minha mãe recebeu.

 

 

A sua imagem sorrindo, vindo receber-me na garagem de nossa casa de Marcílio Dias, naquela tarde, quando do hospital eu regressava, não me sai da memória. Pálido, ele ainda estava muito pálido. Magro, muito magro, quase um espectro dentro de largas calças presas ao corpo por um suspensório. No colo a sua pequenina Karin Aline que em breves dias completaria um ano de idade. Nas faces, um sorriso inesquecível.

 

 

Algumas coisas, alguns fatos, em doses homeopáticas meu mano nos contava. Que aquele supermercado onde os carcereiros dele enviaram-me para fazer as compras era de propriedade deles. Que nada do que eu lá entreguei, às mãos dele chegou…

 

 

Mas as nossas agruras não findaram com a sua liberdade.

 

 

Meses passavam-se. Eu continuava no meu diuturno trabalho no Hospital Santa Cruz. Sem receber um centavo pelos serviços prestados aos usuários do sistema previdenciário. Era um tempo em que não havia SUS. Quem não era beneficiário do instituto de previdência, não tinha como pagar. E estes eram a maioria. Porque a maioria era de desempregados. Dos que mal viviam do pouco que colhiam na lavoura.

 

 

Mas… sobrevivemos. Porque resistir foi preciso.

 

 

Sobreviveremos… Porque resistir continua sendo preciso.

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