Em menos de duas semanas, quatro jovens presos por tráfico em Canoinhas foram liberados pela Justiça
As audiências de custódia foram criadas em 2015 como uma forma de tornar a Justiça mais efetiva. Elas consistem na rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante, em uma audiência na qual também são ouvidas as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. O juiz analisa a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. Avalia, ainda, eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras possíveis irregularidades. Na prática, o juiz decide se o detido deve aguardar seu julgamento na cadeia ou na rua.
A intenção é boa, mas o efeito disso na comarca de Canoinhas não tem se mostrado salutar. É o que pensam autoridades ouvidas pelo JMais. Isso porque, segundo apontam dados divulgados pela Polícia Militar nesta semana, o instrumento tem sido usado para soltar indiscriminadamente. Em menos de duas semanas, quatro jovens presos por tráfico em Canoinhas foram liberados pela Justiça. “Creio que Justiça não está pensando no impacto social de suas decisões”, protesta o comandante substituto do 3º Batalhão de Polícia Militar (BPM), Major Christopher Fhroener, logo depois de receber mais um grupo de moradores reclamando do que julgam ser ausência da segurança pública. “As pessoas reconhecem os ladrões por causa da reincidência e ficam indignadas quando veem a Polícia prender e o cara reaparecer nas ruas no dia seguinte”, explica.
Vereador Wilmar Sudoski (PSD) acompanhou uma dessas reuniões com moradores do bairro Piedade e do Residencial Nossa Senhora Aparecida, uma das áreas com maior incidência de furtos da cidade. Os moradores disseram que sabem quem são os ladrões que circulam pelo bairro e culpam a Polícia pelo que veem como “falta de punição”. Sudoski destacou também que a situação se repete no Campo d’Água Verde, maior distrito da cidade. “Muitos que foram flagrados furtando estão soltos e seguem aprontando. Se não prender, eles vão continuar incomodando. Somos 54 mil habitantes incomodados por 50. Na maior parte das vezes são as mesmas pessoas (que furtam)”, explica.
Frohener explica que o trabalho da PM termina na apresentação do detido à Delegacia de Polícia Civil. Cabe ao delegado oficializar a prisão e encaminhar a denúncia ao Ministério Público que, por sua vez, homologa a denúncia ao juiz criminal, a quem o detento se apresenta na audiência de custódia, que nada tem a ver com o julgamento, que pode ocorrer, sempre adiante, com o réu preso ou não.
COM AS PRÓPRIAS MÃOS
Luiz Gustavo Dranca, morador do Salto d’ Água Verde, segurou nas próprias mãos, com ajuda de vizinhos, um ladrão que entrou na sua casa em dezembro passado. O rapaz tinha 52 boletins de ocorrência por furto registrados na Delegacia da comarca. Dranca conta que conseguiu deter o ladrão porque o modus operandi dele se tornou conhecido em toda a localidade. O acusado não ia menos de três vezes a casa de suas vítimas. Certo da impunidade, furtou da casa de Dranca em uma tarde. À noite voltou a sua casa para continuar furtando. Foi flagrado por Dranca e os vizinhos, que o mantiveram detido até a chegada da Polícia Militar. O acusado ficou preso por sete dias. Solto, voltou a furtar no mesmo dia, aterrorizando o Salto d’Água Verde. A população pediu uma reunião com a Polícia Militar e ouviu o mesmo que os moradores do Piedade: a Polícia faz o trabalho repressivo, mas a Justiça não pune exemplarmente. “Esse tipo de situação é recorrente, a população deseja fazer justiça com as próprias mãos, o que se torna um grande risco para a sociedade”, pondera Fhroener.
A pressão da população do Salto, neste caso, surtiu efeito. Depois de tantas passagens pela Delegacia, a Justiça decretou prisão preventiva do rapaz porque ele ainda é acusado de dois casos de violência contra a mulher e uma tentativa de estupro. A população do Salto, no entanto, já foi avisada que o rapaz pode ser solto a qualquer momento. Desde que ele foi preso, cessaram os furtos na localidade.
FURTO X TRÁFICO
Fhroener frisa que a maioria dos furtos ocorridos em Canoinhas está relacionada ao tráfico de drogas. “Para alimentar seu vício o cidadão recorre ao furto”, explica, lembrando que os receptadores desses produtos, na maioria das vezes, são de fora da cidade, o que dificulta a recuperação.
A promotora da Vara Criminal de Canoinhas, Bianca Andreghetti Coelho, concorda com Fhroener. Ela se diz frustrada pela conduta do juiz criminal em casos de reincidência. “É compreensível a tolerância quando o réu é primário, mas a maioria dos casos é de reincidentes. Hoje (quarta, 12), o réu já havia se envolvido antes em tráfico de drogas em Mafra e no entanto foi solto”, lamenta a promotora citando apenas um dos vários exemplos de reincidentes soltos. Ela lembra que toda a vez que um reincidente volta para a audiência de custódia é mais uma vítima que a Justiça permitiu. “isso nos deixa muito frustrados”, lamenta.
Bianca critica diretamente o trabalho do atual juiz responsável pela Vara Criminal de Canoinhas. Fernando Curi trabalha como juiz substituto da Vara Criminal desde o final do ano passado. A juíza titular está de licença maternidade. “ A titular tem uma postura diferente”, explica a promotora ao contrapor a postura garantista de Curi. Essa postura é a mesma de juízes do Supremo Tribunal Federal, como Gilmar Mendes, seguidas vezes criticado por soltar acusados de crimes de corrupção. A postura garantista visa garantir os direitos do cidadão na eventualidade de ele ser inocente. Segundo o advogado criminalista Leonardo Isaac Yarochewsky, garantismo é “assegurar o que está na Constituição, mas, não só isto, ser garantista é se tornar escravo dos princípios fundamentais da legalidade estrita, da culpabilidade, da lesividade, da presunção de inocência, do contraditório, do devido processo legal e, principalmente, da dignidade da pessoa humana, corolário do Estado democrático de Direito.”
Procurado pela reportagem, o juiz Curi disse por meio de sua assessoria que não pode se manifestar sobre processos em curso pelo princípio da imparcialidade, mas que suas decisões são fundamentadas na lei e no caso concreto.
Sudoski também chegou a procurar o juiz criminal, mas não foi recebido até o momento.
LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
O JMais obteve o nome do rapaz que, segundo moradores do Salto d’Água Verde, furtou a casa de pelo menos 40% dos moradores da localidade. Não pode, porém, divulgá-lo. A Lei de Abuso de Autoridade que entrou em vigor em janeiro permite que jornais, TVs e sites de notícias sejam punidos no caso de divulgar qualquer informação que permita a identificação do acusado. Vale até mesmo uma foto desfocada ou de costas.