Um churrasco de bode

     A churrascada de bode fora realizada junto as barrancas do rio em local bem distante de qualquer sinal de moradia de algum ser vivo e falante

 

Jovens explodindo energias. Jovens esbanjando ideias. Férias do meio do ano. Inverno. Todos os sentidos em alerta e nas alturas. Lagarteando ao sol nas praças da cidade, arquitetando as próximas peripécias para a noite que em breve surgiria.

 

Após a concretização de múltiplos planos, assim tão bem traçados, a população de galináceos não só dos familiares deles, como a de muitos vizinhos também, diminuía a cada amanhecer.

 

Nas cabeças vazias, ideias mais arrojadas começaram a pulular. O território onde moravam era imenso. Mas, os habitantes eram poucos. Arriscada já começara a ficar a busca e a captura dos animais de penas e duas patas, pelos galinheiros conhecidos. Nas tardes ensolaradas ficavam a imaginar onde poderiam angariar novos produtos e novos sabores para as suas noitadas de festas.

 

Muitas empresas já haviam se estabelecido naquele território. E havia uma, em especial, que já diversificara muito a sua área de atuação. De mera serradora de toras de imbuias e pinheiros, de exportadora de simples tábuas de madeira, passara para a produção de linhas mais nobres.

 

Laminados e compensados começaram a ser fabricados em larga escala. Depois vieram os tacos e os parquês. Montaram até uma excelente marcenaria na qual móveis de estilo propuseram-se a produzir. Com mestre marceneiro trazido da Alemanha.

 

O campo para novos empreendimentos era vasto naquele território. E na fazenda que possuíam nas distantes serras, de onde extraíram, por décadas, a matéria-prima para a indústria madeireira, desenvolveram o plantio de esplendoroso pomar. Colhiam-se, lá, as mais saborosas frutas próprias do clima e da estação.

 

Com a grande quantidade que, delas, caíam de maduras ao chão, os acionistas da empresa entenderam que algo mais poderia ser feito. Assim teve início um rebanho de cabras. Cabras que não produziam a quantidade de leite, e, obviamente, do queijo já tão requisitado pelo mercado. Faltava um incremento para que se gerassem rebentos mais produtivos.

 

Nos arredores da sede daquele imenso território a empresa tinha outra fazenda de menor porte. Para onde mudaram o capril e o rebanho de cabras. A fim de melhorar a raça seguiram os conselhos de abalizado médico veterinário e importaram da Austrália um lídimo bode reprodutor. Um bode de pelagem negra e reluzente. Caríssimo.

 

Acionistas eufóricos, prevendo de antemão os lucros advindos quando a nova geração de cabras povoasse aquele terreno a elas destinado, foram todos, em caravana, ao cais do porto, recepcionar o novo habitante do emergente capril.

 

O negro bode reprodutor não poderia viajar em um caminhão por aquelas estradas de chão, esburacadas, e correndo o risco, ainda, de se ferir com os solavancos. Arrendaram da rede ferroviária um vagão especial só para transportá-lo. Um comboio de vagões de carga levaria dias desde o porto até o destino. Providenciaram, então, o mais tenro feno para que bem acomodado o animal viajasse. Com um tratador ao lado. Que cuidaria para que nem água e nem comida especial lhe faltasse no decorrer do percurso.

 

Um ferroviário aposentado, que por muitos anos, em suas horas de folga, já cuidara de um rebanho de cabras de um antigo chefe seu, fora contratado para ser o tratador, não só dos animais que das longínquas serras tinham vindo, como, também, agora, do mais novo habitante do capril.

 

O pasto era imenso. Mas o verde da grama havia sumido pelas constantes geadas que naquele inverno eram diárias. Então, todos os dias, um caminhão da empresa trazia frutas que dos pés caíam sem parar, oriundas da fazenda das serras distantes. E as cabras e cabritos desenvolviam-se a contento.

 

O tratador das cabras, e do bode reprodutor de negra e luzidia pelagem, passava todas as horas do dia atendendo às necessidades do rebanho. Deslumbrava-se com a beleza do novo habitante do capril que crescia a olhos vistos. Terminada a diária jornada, enquanto o sol descia atrás dos morros, encaminhava-se ele para o seu aconchego, junto dos seus, para a sua casa, não muito distante dali.

 

Mal amanhecia lá estava ele no capril, limpando os cochos, providenciando água limpa, providenciando a primeira refeição da criação. Dava, claro era, a sua primeira atenção ao imponente e negro bode reprodutor. Que estava sempre confinado em um alojamento todo dele.

 

Numa certa manhã ao abrir a portinhola leva o maior susto de sua vida. O animal não apareceu correndo para ir em sua já metódica perambulação pelas campinas ao redor. Chamou por ele. Nada. Estranhou lá não estar, pois a portinhola se encontrava fechada. E lá dentro ele não se encontrava.

 

“Ah! Danado!” – pensou ele – “abriu sozinho a tranca e foi correr atrás das cabras”. Depois, raciocinando melhor, imaginou que o bode não iria tirar a tranca e mover a tramela que eram travadas pelo lado de fora…

 

Saiu pelos campos, a princípio apenas nervoso, à procura do animal. Fez o inventário das cabras e cabritos. A contagem conferia com a sua anotação da véspera. Andou pela campina imensa até não aguentar mais de cansaço. E nada do bode de negra e reluzente pelagem.

 

Já nem era mais nervosismo o que se passava com ele. Porque o desespero já tomava conta de sua mente. Foi atrás do gerente a quem relatou a tragédia. Seguranças da empresa acorreram. Varejaram, a cavalo, primeiramente, toda a fazenda. Depois, as propriedades vizinhas. A polícia foi acionada. Passavam-se os dias e nada do luzidio e negro bode reprodutor aparecer.

 

Um dos aguerridos jovens pertencentes à tribo que infernava os galinheiros tinha um tio que trabalhava na empresa dona do caprino mais famoso da região. Que desconfiou não ter sido apenas uma galetada o último banquete da rapaziada.  Só que o piá disse de nada saber. Até porque, justo naqueles dias, teria viajado com seu pai para ir visitar um tio que residia em terras distantes.

 

Alguém que morava nas vizinhanças do capril contou para o gerente da empresa que, logo que caíra a noite, na véspera da descoberta do desaparecimento do negro e reluzente bode, vira uma Kombi cinzenta, meio amassada na lateral, passar por ali. E com um bando de guris dentro dela fazendo a maior das algazarras.

 

Coincidentemente, um conceituado e próspero comerciante da vila tinha uma Kombi que se encaixava com a descrição. E dentro dela encontraram uma grande mancha vermelha. A polícia varejou toda a propriedade do homem. Esmiuçaram o quintal. Remexeram nas cinzas da churrasqueira. Mas nem sequer vestígios de pelos ou ossos de bode foram vislumbrados.

 

O comerciante já estava partindo com os punhos cerrados para esmurrar o seu piá que fazia parte daquele grupo de moleques em férias, quando um policial veio correndo contar que a mancha vermelha encontrada na Kombi era apenas tinta a óleo que escorrera de uma lata. E a lata ainda se encontrava dentro do veículo, caída e destampada.

 

Procuraram depois por algum sinal que relembrasse o negro e reluzente bode pelas residências e sítios onde moravam todos os jovens que daquela tribo faziam parte. Nunca, nada, jamais foi encontrado.

 

A churrascada de bode fora realizada junto as barrancas do rio em local bem distante de qualquer sinal de moradia de algum ser vivo e falante. E as partes do animal que não serviram para consumo no banquete foram incineradas em fortíssimo fogo feito com nós de pinho e grimpas de pinheiro. Fogo que transformou em cinzas toda a matéria orgânica não consumida. Cinzas que se perderam pelas mansas águas do rio. Cinzas que nunca foram vistas e nem ouvidas.  Cinzas que nem para contar esta história restaram.

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