Conheça o trabalho do Sopão da Madrugada, que desde maio de 2016 espalha solidariedade por Canoinhas
Uma receita na parede da casa de Gabriele Pereira Morinaga, no distrito canoinhense do Campo d’Água Verde, dá uma pista do que para ela é o segredo da felicidade: 3 xícaras de bondade, 5 colheres de perdão, 1 litro de sinceridade, esperança a gosto. Aqueça o forno enquanto mistura com muito carinho. Pronto! Sirva-se à vontade.
Se esses sentimentos alimentam a alma e trazem paz, para alimentar o corpo, sopa de macarrão com carne. E que sopa! Na verdade, um sopão. O Sopão da Madrugada.
É da casa de Michele que sai o cheirinho bom de uma sopa preparada com a ajuda da sogra, Vera Lucia Morinaga, e da amiga Flavia Alves de Lima. Elas foram as responsáveis na noite de sexta-feira, 8, mas sempre tem rodízio para definir a equipe que fará a sopa que desde maio de 2016 é distribuída para moradores de rua de Canoinhas. Peraí, mas a cidade tem moradores de rua?
Pois bem, essa foi a primeira pergunta que a reportagem fez aos voluntários do grupo que hoje congrega cerca de 40 pessoas que conversam basicamente por grupo no WhatsApp denominado justamente de Sopão da Madrugada, com direito a camiseta, logomarca e fôlderes de propaganda. A resposta foi um convite para acompanhá-los.
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NOITE ADENTRO
Logo de cara, em uma ruazinha acanhada ao lado rodoviária, cerca de 30 índios saem de dentro de barracas de lona improvisadas em um terreno cuja propriedade não foi confirmada pela reportagem. Acanhados, eles vão aos poucos providenciando vasilhas para receberem a sopa. São pessoas muito simples, que falam um português que engole os artigos, mas que conseguem transmitir nos olhos o desconsolo de uma vida sofrida. Algumas mulheres trabalham, sentadas no chão, na especialidade da tribo: confecção de balaios. Vendem por R$ 25, mas poucos compram. Alguns porque não querem mesmo, mas a maioria, por desconfiar dos índios. “Pouca gente compra”, diz uma índia chorosa, como que em um transe de desolação. O repórter pede autorização para fotografá-las e, como quem pouco se importa, assentem com a cabeça.
Os índios que ali estão vêm de Guarapuava (PR). Eles não sabem precisar a denominação da tribo a que pertencem, apenas contam que de onde vêm não há mais espaço para venda de balaios, por isso, juntam o pouco que tem e partem de ônibus para cidades aleatórias do Sul. Essa prática comum de se instalarem em proximidades de rodoviárias ganhou repercussão nacional em dezembro de 2015 quando um rapaz esquizofrênico matou um indiozinho que era amamentado pela mãe em frente à rodoviária de Imbituba, no sul de SC. Segundo a Polícia Militar, o garoto de dois anos estava com a mãe quando o homem se aproximou e cortou o pescoço do menino com uma faca. A criança morreu na hora.
Passados quase dois anos do ocorrido ninguém mais lembra da história e os “índios que moram perto da rodoviária” continuam invisíveis. Menos para a equipe do Sopão da Madrugada, que todas as sextas leva comida para a tribo. Apesar do nome do grupo, em algumas sextas-feiras o cardápio varia para macarrão com carne moída, por exemplo. A resignação com que a reportagem encontra os índios, relatam os integrantes do Sopão, é comum em todas as visitas. Vez ou outra pedem algo para as crianças. E não são poucas. A reportagem contou oito. Um deles, assim que a mãe enche a vasilha de sopa, se agarra à vasilha numa disputa que, claro, sabe que vai perder e que o único recurso, como de fato foi, será chorar. Engole logo as lágrimas, porém, para devorar o prato da noite.
Distribuída boa parte do panelão de sopa, a equipe segue em dois carros para a praça Oswaldo de Oliveira. Alisson Michels (leia abaixo a história dele), fundador do grupo, diz que ali “mora” um rapaz chamado de Mágico. Relata que era comum moradores de rua dormirem debaixo do coreto, mas desde que alguém colocou fogo no local, a Prefeitura mandou cadear a portinhola que dá acesso ao local. A equipe procura, mas não acha o rapaz.
Antes do terceiro ponto, um posto de lavação abandonado nas proximidades do acesso a Três Barras, parada para receber um panelão de sopa doado por uma senhora, moradora da rua José Boiteux. Ela não quis se comprometer com a missão semanal, mas decidiu fazer “sua parte”, como diz, doando a sopa.
No posto de lavação a equipe não encontra ninguém e estranha a arrumação do local. “Será que expulsaram eles?”, questiona Gabriele.
Dali eles vão literalmente para debaixo da ponte. Lá mora um grupo de andarilhos. Na verdade, eles ficam às margens do rio Canoinhas, na divisa com Três Barras. Gabriele alerta que eles não gostam de fotos. De fato, um deles corre quando a reportagem se aproxima com a câmera. Eles não gostam de falar, mas parecem ter intimidade com Alisson. “E aí parceiro?”, diz um deles sorridente apertando a mão do fundador do Sopão.
Dali, ainda, a equipe distribui o que sobrou da sopa para moradores da rua Etelvina de Almeida Pires, a rua Velha, na entrada de Três Barras.
Panelas vazias, hora de ir para casa. Dormir, com a consciência tranquila de quem fez o bem. Sexta que vem tem de novo.
Grupo se formou a partir da experiência de seu fundador
Alisson Michels se aventurou em uma cidade desconhecida, passou fome e frio, perdeu muita coisa e se tornou dependente químico, até encontrar na ajuda ao próximo uma inspiração

O Sopão da Madrugada começou com a inquietação de quem já sentiu na pele o desprezo e a humilhação de dormir na rua. AlissonMichels nasceu e foi criado em Canoinhas, mas em 2014 decidiu ir para Joinville de carona. Com apenas R$ 50 no bolso viu que não seria nada fácil conseguir um emprego na maior cidade do Estado. Logo, acabou dormindo nas ruas, passou fome e frio, “mas nunca desanimei”, afirma. Dormiu na rodoviária, por sinal, onde cartaz proibia que se pernoitasse no local. Um guarda, no entanto, simpatizou com Alisson e deixou ele pernoitar no local sob o pretexto de que “primos” que ele não tinha viriam buscá-lo. Passou um, dois, três dias e Alisson se obrigou a contar para o guarda, que o perscrutava todos os dias, que tinha inventado os “primos” e que estava só em uma cidade onde ele mal sabia se localizar. Com pena de Alisson, o homem passou a trazer comida para ele que vivia de uma dieta de biscoitos, alimento mais barato que encontrava nos mercadinhos no entorno da rodoviária.
Dessa forma, com pão e café doados pelo guarda de manhã e uma marmita à noite, Alisson viveu um mês na rodoviária. Foi quando conseguiu um emprego de lavador de caminhões em uma fábrica nas proximidades. Ao contar que dormia na rodoviária seu patrão lhe cedeu uma cama em uma casa que dividia com outros funcionários da empresa. Pouco depois pediu um adiantamento de R$ 600 e alugou uma kitnet. Dali por diante sua vida deslanchou. Comprou uma motocicleta e sete meses depois, um carro. Pouco depois teve o carro roubado. Foi quando mergulhou nas drogas. Desanimado diz que fez um pedido a Deus, por um sinal para mudar sua vida. Foi quando lhe ofereceram um emprego em um posto, com salário melhor. Certo de que foi um sinal divino, largou as drogas, mobiliou um apartamento e levou um amigo viciado em drogas morar com ele. Queria mudar a vida do amigo como teve a sua mudada. “Sempre quis morar em um apartamento. Quem olha de cima não vê quem está embaixo”, diz da experiência. Em janeiro de 2016, decidiu largar tudo. Deixou a mobília do apartamento para o amigo e voltou para Canoinhas, onde conseguiu emprego em uma mecânica. Certo dia teve um insight para criar o projeto. Todas as pessoas que procurou para integrar a equipe toparam e, aos poucos, o projeto foi ganhando vida.
E o guarda da rodoviária?
Alisson sempre quis agradecer pela ajuda que recebeu. Juntou três sacolões que recebia da empresa onde trabalhava e certo dia levou para o guarda. Justamente o dia em que o guarda havia perdido sua carteira com todo seu dinheiro e não sabia como alimentaria a família naquele mês. O guarda, comovido, abraçou Alisson. É o calor desse abraço que Alisson sente toda a vez que alguém agradece pelo Sopão da Madrugada.