Ventiladores mecânicos: A salvação

Nós o chamávamos, carinhosamente de Takaokinha, pelo seu pequeno tamanho

 

Somente uns dez anos após a conclusão do meu curso de Medicina foi implantado, entre nós, o Internato Médico. Antes dele cursávamos, mesmo no último ano, as aulas teóricas e práticas em muitas cadeiras importantes.

 

 

Frequentávamos, no entanto, já desde o quarto ano, como alunos internos, as clínicas que mais nos interessassem. Não havia, ainda, um Hospital de Clínicas, em Curitiba. Ficávamos correndo de um hospital a outro, onde a maioria das aulas era ministrada.

 

 

 

Para se fazer a residência na especialidade pretendida era necessário, primeiramente, passar um ano fazendo rodízio nas clínicas básicas, ou seja a Médica, a Cirúrgica, a Pediátrica e a Ginecológica e Obstétrica.

 

 

 

 

Foi o caminho que, depois de formada, percorri pelas enfermarias da Santa Casa de Misericórdia de Santos. Quando findava o meu primeiro ano de residência médica o Serviço de Anestesiologia foi credenciado como Centro de Ensino e Treinamento. O professor Armando Fortuna, que era o chefe do serviço, convidou-me para entrosar-me neste instigante, traumático, mas encantador ramo da Medicina.

 

 

 

Com todo o entusiasmo que me movia para atender o povo do interior mais interior, recusei, afirmando, com muita convicção, de que minha paixão era a de atender o meu paciente. Não o de um cirurgião ou obstetra. O professor Armando Fortuna tentou convencer-me. Em vão. E lá fui eu peregrinar por algumas cidades do norte do Paraná até o dia em que as súplicas de minha mãe foram mais fortes e em minha terra eu vim trabalhar.

 

 

 

Atendia no então Centro de Saúde, no período da manhã, após a visita aos pacientes internados e à tarde em meu consultório. Nele eu ficava, muitas vezes, até tarde da noite, a atender as pessoas que me procuravam. De lá saia exausta e feliz. Até o fatídico dia em que o Brasil mergulhou nos anos cinzentos da ditadura. Então minha clínica ficou quase às moscas.

 

 

 

Quando meu colega, Adir Seleme, precisava fazer uma cirurgia, começava a ministrar a anestesia e quando o paciente já não mais sentia dores, deixava uma das freiras que atendia no hospital, insuflando, por meio de um balão o oxigênio e o éter anestésico. E ele ficava com um olho na ferida operatória e outro na face do paciente. Minuto a minuto pedindo para que fosse medida a pressão arterial, a pulsação, os movimentos respiratórios, a observar a velocidade do gotejamento do soro e tudo o mais que se fizesse necessário para um feliz final de uma cirurgia.

 

 

 

Um certo dia Adir vem falar comigo. Insiste que eu vá fazer a especialidade de anestesiologia. Era muito necessária em nosso meio. Incentivou-me e colocou no prato da conversa tantas considerações que objeção alguma, de minha parte, surtia efeito.

 

 

 

Telefonei para o Serviço de Anestesiologia da velha Santa Casa de Santos. Pedi, humildemente, ao Professor Armando Fortuna que me aceitasse para um estágio temporário. Programara ir para lá logo que entrasse em férias de meu serviço no Centro de Saúde. Teria um mês inteiro para iniciar minha preparação nesta novel especialidade para mim. Foi quando tivemos notícia de onde se encontrava meu mano Aldo e para o Rio Grande do Sul, a pedido de minha mãe, eu me dirigi. Em uma crônica de meu último livro eu conto esta passagem.*

 

 

O estágio foi mais curto do que eu esperava. Mas, digamos, entrei no prólogo de uma nova especialidade. Aproveitei, ainda para assistir algumas palestras no decorrer do III Congresso Mundial de Anestesiologia que se realizava em São Paulo.

 

 

 

E então ousei começar, depois destas poucas tintas, a anestesiar pacientes para os colegas Adir e Antônio Seleme.

 

 

 

Usava aqui um tosco aparelho de anestesia. Era provido de uma máscara, um depósito, em forma cilíndrica, de metal, para a cal sodada e algumas conexões e mangueirinhas que se ligavam a um vidro com éter que era vaporizado pelo oxigênio que por ele passava.

 

 

 

Necessitava-se de correias que ajudavam a prendê-lo em um arco preso à mesa cirúrgica. Malabarismos para contê-lo adequadamente, enquanto segurava a máscara sobre a boca e o nariz do paciente e insuflava um balão que ficava na parte distal.

 

 

 

No ano seguinte consegui antecipar minhas férias no Centro de Saúde e ficar um mês inteiro aprofundando-me nos mistérios da ciência anestesiológica. Com aulas teóricas e práticas e até uma prova no final.

 

 

 

Foi quando eu conheci meu grande amigo Hans Baukelmann, na época mostrando-nos os aparelhos de anestesia que ele fabricava em sua oficina em São Paulo. Era a Oftec, Oficina Técnica, especializada em materiais médicos.

 

 

 

Jamais eu conseguiria adquirir um aparelho de anestesia igual ao que se usava nos grandes hospitais. Então Hans arquitetou algo mais simples, para que eu melhor conseguisse administrar anestesia aos nossos pacientes. Não era um Carrinho de Anestesia. Era confeccionado em metal. Com uma base onde se atarraxava um cilindro de acrílico transparente para armazenar a cal sodada. Duas colunas laterais sustentavam uma régua onde ficavam presos os vaporizadores dos fluidos anestésicos e o fluxômetro de oxigênio.

 

 

 

O aparelho ficava sobre uma mesinha de ferro esmaltado, a meu lado, claro, na sala de cirurgia. Era meu. Uma valiosa aquisição à qual foi acrescentada um laringoscópio, cânulas de intubação oro e naso-traqueal de vários tamanhos e suas conexões, sondas de aspiração e aquela vasta parafernália tão necessária para que se entre, em segurança, em uma anestesia.

 

 

 

A esse tempo usava-se ainda e apenas o éter anestésico. Não havia condições de adquirirmos os gases para o nosso parco Hospital Santa Cruz. Pelo preço do Protóxido de Azoto ou Óxido Nitroso, conhecido, bem remotamente, como Gás Hilariante. E, pelos riscos de explosão, o Ciclopropano.

 

 

 

Mas algo mais era necessário para que uma anestesia fosse melhor realizada. Um respirador. Eram grandes aparelhos providos de grandes balões corrugados movidos pela pressão do oxigênio, dispensando o trabalho manual de se insuflá-los, muitas vezes, durante muitas horas, no decorrer de longas cirurgias.

 

 

 

Um anestesista de São Paulo, de origem nipônica, Kentaro Takaoka, desenvolveu um pequeno dispositivo, circular, com o diâmetro menor que o de uma caneta e, talvez uns quatro centímetros de espessura, que era movido pela pressão do oxigênio, em mistura com fluidos e ou gases anestésicos.

 

 

 

Era ele o nosso salva-vidas. Com ele mantínhamos nossos pacientes em ventilação controlado mecânica no decorrer das cirurgias que requeriam uma anestesia com relaxamento total do paciente.

 

 

 

E quantas vezes, na emergência de uma parada respiratória e ou cardíaca, enquanto nossas mãos efetuavam a massagem ou a injeção de medicamentos heroicos, o respirador de Takaoka, acoplado a uma cânula de intubação, mantinha a adequada ventilação e oxigenação.

 

 

 

Nós o chamávamos, carinhosamente de Takaokinha, pelo seu pequeno tamanho. Por muito anos foi meu companheiro inseparável em muitas horas turbulentas.

 

 

 

Até o dia em que os meus amigos, fabricantes de aparelhos de anestesia, desenvolveram ventiladores mecânicos e respiradores mais avançados.

 

 

 

Uma longa caminhada ainda a percorrer nesta história.

 

 

Porque de outros ventiladores eu precisarei falar para vocês.

 

 

 

*“O Medo do Medo que Contamina”, pág. 203 do livro

“Retalhos Perdidos no Tempo”.

 

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