Adair Dittrich segue em viagem pelo Paraguai
Fora esplendente o amanhecer de nosso primeiro dia em Assunção. Era inverno, sim. Mas, o ameno clima daquela cidade permitiu que encetássemos nossas caminhadas pelas ruas e avenidas, pelas praças e jardins a fim de que pudéssemos olhar com os nossos olhos e palpar com as nossas mãos tudo o que pudesse ser visto e tudo o que pudesse ser palpado naquela manhã de sol.
Retornamos à nossa pousada para o almoço. Foi quando eu descobri o sabor da cerveja. Acostumada que estava com o nosso velho refrigerante de guaraná que naquele tempo ainda podia ser chamado guaraná champanhe, de imediato o solicito, assim, meio automaticamente, ao garçom que nos servia. Que logo colocou em meu copo algo gaseificado, claro, não alcoólico. Mas nada que se comparasse ao meu velho guaraná amigo de tantas refeições já em minha vida.
Não posso dizer que era intragável ou insuportável. Apenas o meu paladar não o aceitou. Foi então que os colegas me incentivaram a experimentar aquele líquido dourado que no copo brilhava com uma auréola de espumas brancas. Neguei-me, a princípio. Eu já havia tentado sorvê-lo de outras vezes, sem jamais conseguir. Porque o seu já conhecido sabor amargo fez com que jamais a ele eu fosse adepta.
Mas, as insistentes provocações de dezoito pares de olhos a estimularem a minha experiência, para, pelo menos, provar aquele líquido dourado especial, que de amargor nada tinha, fizeram-me capitular. E então dela provei, da paraguaia cerveja eu provei naquele simples almoço servido na pousada onde vivia o nosso amigo Antônio. E dela aprovei o aroma e o sabor. E durante o resto daquela viagem o dourado líquido substituiu o meu saudoso guaraná champanhe.
No decorrer da recepção oferecida na Aditância Militar brasileira Antônio apresentou-nos a um novo amigo, Ulysses, oficial que lá servia como Adido da Aeronáutica.
E, logo após o nosso almoço na pousada chega Ulysses com seu automóvel para nos levara a conhecer outros locais pitorescos de Assunção. Era um imenso Dodge conversível recém chegado dos Estados Unidos e ainda tinindo de novo. E logo o apelidamos de navio, tão grande assim nos parecia. Nele conseguimos ficar empoleirados em nove pessoas. Como? Não saberia explicar.
Havia bondes circulando em Assunção, assim como em muitas cidades brasileiras também havia. E, claro, bondes circulavam sobre trilhos. Trilhos cuja bitola tinha a largura exata do espaço entre as rodas do Dodge. Exatamente sobre os trilhos o nosso guia e motorista Ulysses colocou seu carro deixando-o por eles rodar. E, com a maior naturalidade, troca de lugar comigo e me entrega a direção. Foi uma aventura delirante e deliciosa. Foi a primeira vez que pilotei um carro sem jamais sair da linha… literalmente…
Fora um dia intenso e estafante. Ver em um dia o que Assunção tinha de culto e belo para nos mostrar. E mais surpresas o nosso amigo Ulysses nos reservara. Para completar o dia ele nos levou para um Night Club. Não muito grande. Nem luxuoso. Nem muito espaçoso. Era um local com finura e aconchego suficiente para se passar algumas horas ouvindo música e contando causos e delirando histórias. O som nunca era alto que impedisse as boas conversas. E no lusco-fusco pudemos apreciar um belo espetáculo musical. Um conjunto nativo com suas tradicionais flautas e harpas solando deliciosas guarânias. Mas, havia também um piano incidental acompanhado ainda de oboés, violoncelos, contrabaixos, guitarras e uma quase inaudível caixa que ressonava o compasso, tocando os clássicos boleros, foxes, blues e beguines de então, bem como os nossos sambas-canção.
Foi mais uma bela e alegre noite nas últimas férias de um tempo de estudante… das últimas férias… férias que só muitas décadas depois voltei a usufruir na vida.
No novo amanhecer já nos preparávamos para mais uma longa jornada. Iríamos conhecer o encantado e tão cantado lago azul de Ypacarai, palavra que em língua guarani significa Lago do Senhor.
Realmente era lindo e azul a se perder na distância de um horizonte sem fim refletindo todo o esplendor de um céu anil-turquesa. Um lago já muito visitado por pessoas do mundo todo que ao Paraguai chegavam.
As estradas eram quase todas de chão batido naquelas distâncias que percorríamos. Porque conhecer a vida em torno do lago era preciso.
De recanto em recanto pudemos apreciar a grande variedade dos quitutes nativos das terras guaranis. De quebrada em quebrada pudemos conhecer os encantos de uma paisagem tão bela.Um lago cercado por morros cobertos por densa vegetação que se estendia até as aldeias nas elevações circunvizinhas.
Muitos córregos afloram no lago, provendo-o sempre de novas águas. Águas que ele joga num afluente do Rio Paraguai. Águas que às águas de nossos rios vão se juntar e se lançam pelo delta do Paraná nas águas do Prata.
Nestes recantos todos fomos admirando e adquirindo os mais belos suvenires que levaríamos aos nossos. Xales elaborados com a magnífica renda Ñanduti. Camisas, blusas e toalhas de um fino tecido que nos teares manuais as mulheres guaranis vão tecendo ante os nossos atônitos olhares. E as bolsas e pequenas maletas de puro couro cru. Claro que um pouco de cada coisa eu fui armazenando. E aquela maletinha que era a miniatura de um bau de couro, com todos os detalhes e costuras foi outra irresistível aquisição. Serviria como minha nova frasqueira de viagem. E ainda peguei outras duas, mais pequenas ainda, para presentear minhas sobrinhas-meninas.
A exaustão que me tomou por inteiro, devido às andanças do dia, impediu-me de desfrutar,fora da pousada, da última noite que passaríamos no Paraguai. E havia ainda toda uma bagagem para ser acomodada nas malas. Preferimos, eu e mais alguns colegas, passar esta noite no hotel onde jantamos.
E então naquela noite, naquele jantar de despedida conheci uma figura extraordinária que na pousada vivia. Era um velho professor já de barba e cabelos brancos. Um filósofo. Conhecedor das histórias e das geografias do mundo. Que não tecia loas ao ditatorial regime que do Paraguai já havia tomado conta.
Alternando goles da já muito conhecida e ótima Caña Paraguaia com muitos copos de água foi ele dissertando sobre a situação em que o seu país havia mergulhado sob os tacões de um duro poder.
Muito ele falou. Muito ele nos contou. Confiou em meus ouvidos que ouviam e em minha boca que silenciaria. Talvez a sua argúcia filosófica percebera que das ideias e dos ideais dele eu compactuava.
Foi um sarau lítero-político-histórico-cultural. Que ficara sepultado até hoje no profundo lago de minha memória.
No dia seguinte voávamos sobre o Chaco rumo a Montevidéu.