Uma longa viagem de trem descortinava-se a nossa frente. A viagem pelos Ferrocarriles Argentinos desde Buenos Aires até as montanhas, até os Andes, até San Carlos de Bariloche.
Nessa época eram os trens, ainda, os grandes meios de comunicação em nosso continente e a rede ferroviária argentina, uma das mais pujantes. Entrelaçavam-se os trilhos por todo o país como se fossem fios de imensa teia de aranha cujo núcleo, cujo ponto de partida era a capital federal.
Chegamos à estação férrea de Retiro onde nosso comboio já a postos se encontrava. Aguardando que a multidão nos vagões entrasse. Aguardando que as bagagens nele se acomodassem. Aguardando que o sino da gare soasse dando o último aviso de embarque. Aguardando que o apito do agente da estação autorizasse a saída. Aguardando que as engrenagens e manivelas da locomotiva iniciassem seus movimentos e, enfim, que os vagões pelos trilhos se pusessem a rodar.
Lentamente, da estação, a extensa serpente de ferro foi saindo e desenvolvendo razoável velocidade e através da grande cidade foi passando. Corria entre fábricas e armazéns, entre oficinas e jardins. Corria no meio do bulício do centro nervoso,chegando aos bairros, aos arrabaldes até encontrar as verdejantes campinas que se perdiam nas coxilhas além.
Através das janelas meus olhos perpassavam os horizontes ao longe, na tentativa de captar todas aquelas diferentes imagens.
Partíramos de Buenos Aires logo após o meio-dia. Um carro-restaurante e mais alguns carros-dormitório faziam parte da composição de nosso comboio. Dentro deles passaríamos quase vinte e quatro horas. E entre aqueles vagões todos nós nos locomovíamos como se estivéssemos ainda em plena Avenida de Mayo. Porque necessário era conhecer todos os cantos de nosso trem. Nossa bagagem estava acomodada nas cabines que tinham sido previamente reservadas. Mas, no correr do dia, era no vagão normal que nós permanecíamos.
Após almoçarmos no carro-restaurante demos início ao reconhecimento do longo veículo que pelas pradarias já nos conduzia. E, nestas andanças, deparamo-nos com um aviso, para nós, inusitado, nas portas de todos os vagões. Um aviso em alto relevo gravado nas estreitas portas de ferro dos vagões. Para que jamais daquelas portas fosse removido.
Em bom espanhol lá se lia:
“Es prohibido escupir en el suelo”.
Achamos muito estranho. A princípio ainda rimos. Mas, depois, ficamos a cismar. E os vagões de nossa terra que nem o aviso nas portas trazem? E cospe-se e escarra-se por onde se anda e por onde se passa, sem a menor cerimônia. E a sujeira e as bactérias a vicejar e a pulular pelos assoalhos de nossos trens e bondes e ônibus…
O que nos causara um sorriso cínico e talvez, até, uns risos de deboche de alguns, era, em realidade, a marca da civilização. Mas, lá, os vagões eram limpos.
À medida que nosso comboio se distanciava da grande cidade a imensidão dos pampas argentinos desenrolava-se a nossa frente. A imensidão do pampa a se perder nos horizontes. De lado a lado. Estâncias de criação de gado sucediam-se diante de nossos olhos. Exuberantes pastagens, que, sem cessar, germinam e crescem naquelas paragens onde se desenvolvem e se criam as mais perfeitas e robustas raças de gado.
Poucas horas eram decorridas e o espetáculo do crepúsculo do entardecer impregna os meus olhos. E a grama do pampa que era verde ia passando por uma metamorfose de cores. Parecia que cada raio de sol ao aproximar-se do horizonte conferia um colorido diferente àquela imensidão sem fim.
E eu vi o arco-íris, como um todo, a estender-se sobre o capim umedecido. E eu vi todas as cores e todos os tons exibindo passos diferentes de uma dança sincopada na imensa planície relvada.
O sol aproximava-se, como se fora uma bola em chamas a girar, da linha do horizonte. Aproximava-se, aos poucos, da terra e nela foi afundando. E então o seu fogo pelo pampa todo se espalhou. Fagulhas misteriosas em cada pedaço da relva que se estendia pelo mundo ante os meus olhos. Até que as labaredas todas sumiram. Até que as cores todas se desvanecessem. Até que a claridade do dia cedesse ao lusco-fusco que antecede o negrume da noite. Até que a escuridão nos envolvesse. Até que Vênus surgisse com seu brilho para nos dizer que sempre haveria uma luz para nos mostrar os caminhos.
Por muito tempo, ainda, no vagão normal de passageiros nos deixamos ficar. Vendo vilas pequenas passando. Vendo cidades à beira da linha do trem. Paradas que indicavam o fim da viagem para muitos. O começo para outros. E o trem sempre em ebulição.
Passáramos por Bahia Blanca, entre tantas outras até chegarmos a Viedma, o ponto mais ao sul que atingiríamos. Dali para diante o nosso comboio rumaria em sentido oeste, em direção aos Andes nevados.
Após o jantar procuramos nossas cabines porque a hora do repouso era chegada. O vento nessa parte do continente era gélido e fustigante. O famoso pampeiro que vem dos glaciais polares. Impetuoso vento das planuras do sul do continente que entrava assobiando pelas frestas. Estávamos em plena Patagônia. Em pleno deserto da Patagônia. E suas areias entravam em nossas narinas, em nossos ouvidos, em nosso âmago. E o sono se fora…
Frio não sentíamos. O vagão era aquecido. O ruído do vento suplantava o ruído das rodas e engrenagens. Percebia-se que já estávamos galgando territórios mais elevados. Porque eu conhecia aqueles sons. Os sons de um trem subindo colinas. Subindo coxilhas.
Sim, desde o nível do mar em Viedma, o planalto patagônico, com vagar, íamos atingindo. A noite seria longa.
Por horas ficamos ainda, alguns poucos, reunidos em torno de nossas bagagens que de mesa de pano verde servia para um animado jogo de cartas. E no Pif-Paf e na Caxeta a noite corria com o trem. Todo mundo batia. Menos eu. Todo mundo ganhava uma partida. Menos eu. Ficava pendurada por uma carta, para bater até com as dez, desde o início da rodada. E a carta não surgia em minha mão. Foi então que dois colegas ali presentes, crendo mais em minha inabilidade do que em minha má sorte, a meu lado se postaram. Como guardiães. Para tomar conta de meu jogo.
E, boquiabertos tiveram que admitir que eu não fora feita mesmo para jogar. Eu recebia o jogo pronto. Desde o início. E a malfadada carta para que eu desse o grito de vitória jamais entrava. Como poucas vezes entrou em todos os jogos que na vida eu joguei.
Mas, o sono chegou. E eu queria estar acordada para ver o sol nascer nas montanhas. Já tomávamos o café da manhã quando ele surgiu no horizonte. Com novo espetáculo de cores e matizes.
Nosso comboio serpenteava em direção ao oeste. Lentamente subindo o planalto patagônico para encontrar-se com as faldas dos Andes. Já vislumbrávamos, ao longe, o recortado das montanhas desenhando-se contra o azul que no céu se definia na madrugada que sumia.
Ah! Eu via, enfim, as andinas montanhas que há tanto eu estudara. Que há tanto eu visitara pelas páginas dos livros de Karl May. Os Andes que na adolescência eu conhecera em “Percorrendo as Cordilheiras” e “Aventuras no Rio da Prata”. E eu as via, agora, ao longe, em toda a sua grandeza. O espetáculo de um sol nascendo e nelas se espelhando. Com todas as nuances de cores que possa ter um nascer de sol refletido nas montanhas distantes.