Em mais um capítulo de sua aventura, Adair Dittrich se despede de Bariloche
Jamais um dia agitado e cheio de aventuras seria cansativo para quem é jovem e está desfrutando de uma magnífica viagem de férias.
Após o retorno do congelamento resultante das peripécias de um dia inteiro nas partes nevadas do Cerro Catedral um reconfortante e cálido banho bastou para deixar a mente e o corpo aptos para mais emoções.
Preparamo-nos, então, para uma noite festiva no hotel Llao-Llao em cujos salões participaríamos de um suntuoso jantar dançante. Fazia parte, ainda, desta festividade um desfile de beldades que concorriam ao título de Rainha da Neve de Bariloche. E foi coroada, exatamente, uma garota de Curitiba e que estava hospedada em nosso hotel, o Bella Vista Hotel.
Na sagrada madrugada de Bariloche nós já tomávamos o nosso café da manhã quando entrei em contato com os organizadores do evento da noite anterior e,entre eles, alguns jornalistas. Presentearam-me com uma bela foto da Rainha da Neve, com sua coroa, seu cetro e sua reluzente faixa. E por intermédio deles logo pude enviá-la, juntamente com meus textos, para o jornal “O Dia” em Curitiba.
E uma magnífica surpresa a mais me aguardava. Ofereceram-nos um carro grande, uma limusine, com capacidade para transportar oito pessoas, a fim de que pudéssemos conhecer outros recantos em torno de Bariloche.
Cestas com o inimaginável para se degustar durante o passeio. Desde os mais saborosos e variados pães recheados com fatias de presunto e queijos da região, garrafas térmicas com café e chá a canapês e biscoitos, além de deliciosas, aromáticas e saborosas maçãs e garrafas de vinho.
Inesquecível passeio por estradas que contornavam montanhas, que margeavam lagos, que se estendiam sob as copas das mais variadas e altíssimas coníferas.
Foram horas de deleite para olhos que não se cansavam de olhar, para espíritos que, em silêncio, não se cansavam de sentir a beleza de caminhos deslizantes entre nuvens.
E o nosso guia a falar dos detalhes de grutas, de flores e de árvores que por toda a parte se encontravam. Para ele cada curva e cada pedra tinha alguma história a ser contada.
Foi lá que eu conheci as arraianas que, junto com as sequoias milenares e os pinheiros gigantes, cobriam a paisagem. Não conseguimos ver as milhares de trutas que nos lagos deveriam estar em festa.
Olhando para as cristalinas águas do lago ao nosso lado, afirmava o nosso guia que preciso seria ouvi-las. Porque elas falam. Porque do clima elas contam. E, naquele momento, espelhavam e sussurravam a proximidade de um tempo mais fechado anunciando, talvez, até nevascas dentro das próximas horas. Era o momento de retornarmos ao aconchego do nosso hotel.
E foi lá, através das vidraças do enorme salão que embevecida eu fiquei a olhar o deslumbrante espetáculo dos flocos de neve a voltear pelo espaço que,caindo ao solo,davam início à tecitura de um imenso tapete branco.
Não preciso fechar os olhos para relembrar aquelas horas em que naquele recanto, em êxtase eu fiquei. A lareira, solenemente, crepitava ao lado jogando no ar o aroma de cedro queimando. A hora do crepúsculo a aproximar-se e aqueles flocos branquinhos, como pétalas de pequeninas flores, a vagar pelo espaço infinito a minha frente.
E assim passei alguns dos meus mais belos dias a deslizar pelas montanhas nevadas, a encher os olhos e a alma com paisagens antes jamais vistas, a aspirar perfumes vibrantes da natureza antes jamais sequer imaginados…
Nosso comboio começaria a sua descida para o vale logo após o meio dia. As horas que sobraram nesta última manhã andina foram ocupadas em percorrer as tiendas para adquirir os últimos regalos e tentar a tudo acomodar em minhas já abarrotadas malas.
Paulatinamente o trem, contornando as curvas dos Andes, foi descendo pela imensidão da Patagônia. No resto da claridade daquela tarde eu não desgrudava o rosto da janela envidraçada e meu olhar tentava envolver toda a paisagem do entorno. A cordilheira distanciava-se. Seus contornos esmaeciam-se aos poucos perdendo-se junto com os últimos raios do sol. Só a sua imagem em minha mente ficou. Porque para lá nunca mais voltei. E nunca mais a vi. Nunca mais a vi ali, no cone que finda o nosso continente.
Não era uma abrupta descida, pois desde os gélidos cumes andinos até o distante mar em Bahia Blanca por declive suave estende-se a ferrovia.
Novamente o cortante vento glacial varre a imensidão desértica da Patagônia. Novamente as finíssimas areias fazem sua dança frenética impelidas agora também pelo contínuo movimento das inúmeras rodas que rolam pelos trilhos de ferro.
Novamente as finas e cristalinas partículas que atapetam o grande deserto imiscuem-se pelas fendas e pelas frestas e infiltram-se por nossas narinas e ouvidos.
Por muito tempo ficamos ainda a conversar no vagão restaurante após o jantar, lembrando-nos que dentro de pouco tempo retornaríamos à nossa nada rotineira vida, espalhada entre aulas práticas e teóricas, que tomariam todas as horas do dia.
A noite pareceu-me curta demais dentro de nossa cabine no carro-dormitório. Vislumbrávamos já o pampa, branquinho,perdendo-se nas fímbrias do horizonte, enquanto tomávamos o café da manhã. E o nosso comboio continuava resfolegando célere por aquela manhã de luz. Deslizávamos pela gélida brancura que cintilava ao sol do inverno austral. Cristais de gelo reluziam pela planura imensa.
A manhã avançava. O sol já se encontrava bem acima da linha do horizonte seguindo seu curto trajeto invernal. Em alguns pontos percebia-se já a água escorrendo pelos barrancos onde o sol incidia com mais intensidade. Era o momento da fusão do gelo.
Aproximávamo-nos já dos arredores de Buenos Aires. Pouco antes do meio-dia desembarcaríamos na estação ferroviária de Retiro. Ao descermos do trem não queríamos acreditar na grata surpresa que se encontrava sorrindo a nossa espera. Era o nosso amigo Ulisses que conhecêramos na embaixada brasileira em Assunção. Lá estava ele com seu enorme Dodge para nos levar para o hotel.
E assim, com este cicerone que sabia tudo da grande cidade platina, muitos locais ainda pudemos visitar. Naquela noite mesmo ele nos levou para conhecermos o mais tradicional prato da culinária argentina.
Numa época em que o movimento de veículos não era intenso rodamos bem mais de uma hora através de vários bairros até chegarmos a uma das famosas cabañas já nos arrabaldes de Buenos Aires.
E foi então que eu fiquei conhecendo a verdadeira parrillada argentina. Eu não conseguia acreditar que havia algo mais do que carne naqueles pratos saborosos que tinham sido grelhados sobre brasas rutilantes. O maître colocava sobre nossos pratos as mais inusitadas porções de miúdos de gado bovino e suíno e as descrevia com minúcias. Devo ter apreciado o inimaginável graças ao bom vinho que acompanhou nosso jantar.