Adair Dittrich se despede da Argentina
Últimas horas em Buenos Aires. Últimas frenéticas buscas por recuerdos e regalos. Últimos cartões postais endereçados. Último almoço para nos despedirmos do inigualável baby beef e do vinho e da cerveja platinas. Sem esquecer da água que se gaseificava na hora apertando apenas um sifão na tampa das garrafas de vidro.
Nossa bagagem, que triplicara desde nossa saída de Curitiba, empilhava-se no cais, pronta para o embarque no “Louis Lumière”, o navio francês que nos deixaria no porto de Santos.
Minha madrinha Elfrida Olsen também lá se encontrava para um último adeus. Com ela já havia passado parte daquele dia. Com ela fizera minha última refeição na capital portenha. E o amigo Ulisses, o Adido da Aeronáutica junto à Embaixada Brasileira em Assunção sempre ao nosso lado.
O burburinho, pessoas a embarcar, amigos e amores cercando os que partiam, marinheiros despedindo-se das namoradas que naquele porto deixavam, carregadores do porto empurrando vagonetes estufados de bagagens, a habitual malandragem transitando em torno…
E a nossa animada conversa correndo solta… quando, num repente, dei por falta de minha maletinha de couro cru, em forma de bauzinho… A maletinha que eu adquirira ainda no Paraguai logo no início de nossa viagem. Dentro dela alguns pequenos recuerdos, muitos cartões postais, muitos folhetos de restaurantes e hotéis, teatros e casas de espetáculo e tantos locais outros por onde andáramos nestes dias todos.
Seu conteúdo era o menos importante. Mas, perder a maletinha de couro cru, em formato de um bauzinho, fez com que eu me sentisse como a criança que se vê privada de seu mais novo e amado brinquedinho.
Do alto do convés centenas de braços acenavam um último adeus aos que no cais permaneciam. Do alto do convés centenas de olhos fixavam-se nos que do cais acenavam seu último adeus.
Lentamente, bem lentamente, o navio se afastava da amurada do porto. Lentamente, bem lentamente, o rebocador o conduzia enquanto, soberanamente o prático o levava para fora do movimentado canal.
O entardecer já nos encontra em alto mar. Ou seria em alto Rio-Mar del Plata? Porque ao sul das costas do Uruguai nosso navio singrava.
Era noite já quando, ao longe, cintilavam as luzes de Montevideo. Vagávamos ao largo. Alternavam-se alguns pedaços de escuridão total com outros de poucas e tênues luminosidades. As cidades e as vilas lá estavam. A memória me dizia por onde estávamos passando, pois, há poucas semanas, por toda aquela orla havíamos trilhado.
Quando um clarão ao longe apareceu, sabíamos que estávamos nas cercanias de Punta del Este. E, logo após, em pleno Oceano Atlântico nós nos encontrávamos. O Louis Lumière em alto mar deslizava.
Como cantava Caymi, era “um balanço de berço… o balanço do mar…”. Deste enlevo no convés aspiraram-me para o grande salão de refeições onde o jantar da primeira noite a bordo nos aguardava. O menu, as iguarias, o estilo, os vinhos tudo era francês; até água mineral oriunda era dos Alpes franceses. Lembrava-me um certo restaurante de Curitiba que ainda existe e que fica lá pelas bandas do Passeio Público. Ah! O sabor daquelas iguarias… o tempero… tudo uma preciosidade.
Melodias francesas rodavam em discos de vinil. Depois do jantar vieram músicos a nos brindar com um coquetel de músicas internacionais.
Uma lua crescente espalhava já, pelas águas turbulentas, os primeiros sinais de sua ainda tênue luminosidade. De nada adiantava forçar minha visão porque nada além da marmórea escuridão do mar se estendia por todos os lados. O balançar das águas era um afago para o corpo e para a alma. E no seu embalo o sono chegou.
Na fria manhã meridional, cedo já nos encontrávamos para saborear a nossa primeira refeição em alto mar. Algo inusitado para aquela hora chama-me a atenção. Alguns colegas de olhos vermelhos e com forte hálito lembrando o odor do vinho. Não só sorrisos, mas sonoras gargalhadas foram as respostas à minha inquisição. A deliciosa bebida tradicional francesa, de ótima qualidade e procedência, servida fora em jarras no decorrer do jantar da véspera e por muitas horas ainda no bar do navio. Vinho à vontade. Alguns colegas levaram as jarrinhas para suas cabines. Não só ingeriram o que o organismo deles aceitou e suportou, como ainda o usaram como líquido para escovar os dentes naquela manhã.
Entre jogos e brincadeiras e tentativas de, ao largo, no horizonte, vislumbrarmos algumas nesgas de terra e ou outras embarcações, passavam-se os dias. Meus buliçosos amigos inventavam, a cada passo, novidades para ajudar o tempo passar. Algo havia de invariável no cardápio francês. As indefectíveis batatas, que, naquela folha de cartolina vinham, solenemente grafadas como pommes de terre.
E em uma refeição após a outra lá estavam as pommes de terre sautés ou pommes de terre four ou pommes de terre frites ou pratos outros sempre avec du pommes de terre.
Então os jocosos colegas, na mais santa brincadeira, datilografaram em uma folha de papel com o timbre do “Louis Lumière”, um diferente menu que deixou o Maître muito magoado e muito irritado. Tudo o que era servido no correr do dia desde o café da manhã, até a última sobremesa do jantar, no menu por eles elaborado, trazia, como complemento, o infalível avec du pommes de terre.
Não tenho lembrança da duração dessa nossa jornada pelo mar. Foram muitos dias, pois o Louis Lumière desenvolvia uma velocidade de 17 nós. Era um navio muito elegante, todo branco, muito diferente das torres flutuantes de hoje. Tinha apenas três conveses e capacidade para quatrocentos passageiros e cento e cinquenta tripulantes. Parecia ser tudo perfeito. Para a época. Penso, no entanto, que estabilizadores ainda não faziam parte dos componentes dos navios.
Posso não me recordar do número de dias desta viagem. Mas há uma noite que jamais será esquecida, a noite da passagem pelo turbulento golfo conhecido pelos marujos como o Golfo de Santa Catarina.
O jantar já havia terminado e reuníamo-nos no convés para observar o que do mar se via sob as luzes do entorno do navio. Envolta em meus pensamentos logo percebi que lá eu me encontrava sozinha. E a indagar-me fiquei tentando imaginar o que teria acontecido com o resto do povo. Ventava muito, ventava forte e o navio estava a balouçar-se de uma forma bem mais violenta. Resolvi então que era hora de tomar um banho e ir dormir também. Voltando ao camarote estranhei lá não encontrar minha colega de quarto.
Dentro do banheiro percebi que algo diferente acontecia. Fui jogada, impiedosamente, de um lado para o outro, entre as quatro paredes, enquanto a água do chuveiro espalhava-se em todas as direções. Meu primeiro pensamento foi pôr a culpa na taça extra de vinho que havia tomado no jantar. A muito custo o banho findou. O terrível balançar continuava. Saí para ter notícias dos amigos e tentar saber o que ocorria. Nada e nem ninguém. Lá fora a noite era um breu e o rugir do vento parecia o rugir violento de feras enjauladas.
Finalmente encontro um taifeiro a vagar pelo navio. Dele eu só enxergava a brancura dos dentes. Era um carioca, de avantajada estatura, que já no Rio embarcara. Um marujo cor de ébano que, sorrindo me explicava as histórias do golfo, do Golfo de Santa Catarina. Que era um local no qual os navios dançavam ao bel prazer “dos homi do fundo do mar”… Ao meu olhar interrogativo, sussurrou-me baixinho: “não se deve fala o nome… mas… os homi são os demônios das trevas do fundo das águas…” E aconselhou-me a logo me deitar em qualquer lugar, assim como todos os demais passageiros já haviam feito.
Claro que não fui. Mas, não demorou muito para que à tontura que se já se instalara somadas fossem as náuseas e um crescente mal-estar. Então eu entendi porque não haveria termo mais cabível que o termo mareado para definir este enjoo.
Na manhã seguinte pouca gente no salão de refeições para o primeiro desjejum.E os que lá conseguiram chegar tinham os olhos fundos e a lassidão estampada nas faces.
Uma noite de tempestade no Golfo. No Golfo de Santa Catarina. Onde os rugidos são os mais fortes. Onde os gritos de desespero, os mais intensos. Onde até os mais fortes esmorecem. Pelo mal-estar causado pelo balançar que parecia não ter fim ou pelo pavor intenso de ir morar para sempre no fundo da escuridão do mar sem fim.
Uma noite de tempestade no Golfo. No Golfo de Santa Catarina. Uma noite que, como estigma, em minha memória ficou.