Adair Dittrich encerra sua jornada pela América do Sul
Não, o mar não se tornara mais manso após o tumulto de suas ondas quando o “Louis Lumière”, atravessara, heroicamente, o temido Golfo de Santa Catarina. Rugia o oceano em toda a sua grandeza. Balançava o navio de bombordo a estibordo e, mesmo, de popa a proa. E fomos nos acostumando a andar pelo convés com aquele andar gingado, com aquele andar de malandro que é o andar comum dos marinheiros.
À medida que, para o norte, subíamos a temperatura ia se elevando, mesmo sendo ainda inverno nas bandas do sul. Também as ondas já não eram mais aquelas ondas que mais pareciam golfadas de água espumante e salgada a querer nos engolir. O nascer da lua crescente no horizonte se fim cobria a imensidão do mar. E na calmaria das espumas flutuantes seus raios prateados figuravam-me naves passeando pelos céus.
Num belo amanhecer ensolarado avistamos, ao longe, a orla santista. As luzes das cidades ainda piscavam e misturavam-se com o brilho dos raios do sol.
Muitas horas ainda até a atracação no porto, até a permissão para o desembarque, até as burocráticas passagens nossas e nossas bagagens pela alfândega.
Um ônibus à nossa espera. Para deixar a maioria na estação rodoviária e cada qual tomaria seu caminho de retorno para junto dos seus. Eu fiquei mais um dia ainda pela orla paulista. Meu voo de São Paulo para Curitiba seria apenas na tarde do dia seguinte.
Rumei direto para a casa de minha grande amiga, colega e companheira de quarto desde os dias em que prestávamos os exames vestibulares para o ingresso na Faculdade de Medicina. Minha amiga Maria Alice Braga, que tão precocemente partiu para o mundo encantado lá do Alto.
Após terem sido os regalos distribuídos e saboreado um esplêndido almoço que dona Marina, mãe de Maria Alice preparara, preciso era dar um trato nos cabelos e nas unhas que se encontravam em miserável estado.
O salão que costumávamos frequentar não era longe da casa de minha amiga e para lá me dirigi a pé, matando as saudades daquelas árvores tão santistas, os sombreros que margeavam as ruas e avenidas. Na ida para lá não reparei muito nos desenhos das calçadas. Mas, no retorno, fiz o caminho que margeava a praia. Com revestimento todo em petit pavé com desenhos em formato de ondas. E aquela ondulação intermitente em branco e preto, aliada à minha ainda ondulação como se no navio ainda estivesse, foi o estopim para o início de uma terrível tontura acompanhada de todos os sintomas de um mal-estar que um ser mareado possa ter.
Ainda bem que sob as frondosas árvores do jardim da beira-mar inúmeros bancos havia para se escolher. Nem me sentei. De chofre, nele estatetelei-me. Não por muito tempo… mas até que tudo cessasse e eu para a casa dos amigos pudesse retornar.
À noite fomos a uma pizzaria. E, claro, quis mostrar a eles que eu já tomava cerveja. Bastou um copo para ficar tonta. Não, não era mais a tontura do navio. Acostumara-me a tomar cerveja e ou vinho lá pelos paralelos bem ao sul do continente onde o frio era intenso. E agora estava eu num inverno tropical, sentindo as delícias do calor santista.
No dia seguinte eu já aterrissava em Curitiba. Um amigo no aeroporto esperava por mim. O avião não chegara em tempo para que eu tomasse o ônibus, o último ônibus que viria para Canoinhas. Mais um dia de espera para rever os meus. Mas, um jantar estava programado por lá e ficamos por horas agradáveis a conversar entre amigos.
Na redação do jornal ‘O Dia” já tinha sido outra festa quando entreguei os textos redigidos durante a viagem no “Louis Lumière” e outras fotos obtidas pelo caminho.
Ao chegar aqui assaltou-me a preocupação em saber se sobraria um carro de praça na rodoviária para me levar para casa. Porque eles eram raros. Normalmente os passageiros ao descer dos ônibus já davam de encontro com carregadores que levavam suas malas ao destino. Pouco serviço haveria ali para eles. E, também, não valeria a pena levar alguém até alguns dos hotéis que ficavam muito próximos dali. Foi então que avistei minha irmã Aline, com toda a filharada, ao lado de um carro de praça, acenando para mim. Era o carro de um grande amigo de quem a família já era freguesa desde os tempos de minha Nonna Thereza Gobbi, o carro do seu Müller.
Rumamos para a minha vila encantada. Finalmente, a chegada em casa. Já estava rodeada de toda a turma de sobrinhos quando descarregamos as pesadas malas. Olhos arregalados e mil perguntas no ar. Todos ávidos para tudo ver e tudo saber. Claro que havia algo para cada um deles. E antes que eu pudesse entregar a carta e os presentes que minha madrinha enviara para minha mãe, tive que ir entregando um a um os regalos para toda a raia miúda.
Sucesso inimaginável por mim foi a entrega das minis maletinhas de couro cru em forma de bauzinho que de Assunção eu trouxera para as meninas Arcélia e Lúcia Helena. Lembro ainda do menino Sérgio indo dormir com a pantufa que de Bariloche viera. E assim os mimos foram sendo distribuídos e as malas sendo esvaziadas.
O calor da orla santista ficara longe e, aos poucos o frio foi tomando conta de tudo. Era hora de reunirmo-nos em torno do grande fogão de lenha da cozinha de nossa casa e aguardar pela sopa que estava sendo preparada.
Saboreá-la quentinha e fumegante, feita com caldo de galinha criada em nosso galinheiro, com as verduras plantadas e colhidas por minha mãe, depois de quase um mês de sabores outros tão diferentes. Todos os nosso almoços e jantares durante a viagem tinham sido muito bons. Mas, nada a ser comparado com o sabor, o tempero e o aroma da tradicional sopa de minha mãe.
Aceleradamente o mês de agosto chegava e com ele o reinício de nossas aulas.
Disse adeus à minha mais bela paisagem. Da janela de meu quarto, ao longe os pinheirais e o rio, o meu rio…. E ao fundo a língua prateada de uma lua cheia que no horizonte encetava a sua caminhada por um céu que logo estaria salpicado de estrelas. Não há crepúsculo mais belo que aquele em que se vislumbra uma lua surgindo de um lado da vida, enquanto que do outro um sol de inverno mergulha atrás da colina, em outro horizonte.
Foi curta a minha permanência em casa. Reiniciavam-se os tempestuosos últimos meses de nosso curso e os dias de nossa nada rotineira vida dividida entre aulas práticas e teóricas.
Claro que tudo sempre entremeado por muitas horas de lazer e de descanso também. Corria já o mês de setembro. Estava envolta em meus estudos, numa tarde de sábado, quando surgem alguns colegas companheiros de nossa grande viagem falando-me de uma grande surpresa.
Acompanhavam o nosso amigo Ulisses, que de Assunção, viera com seu enorme Dodge para nos visitar. E trouxera-me um regalo das terras guaranis. Trouxera-me uma bolsa de couro cru, em forma de um bauzinho, igual àquela que no cais de Buenos Aires haviam me surrupiado.
E assim, fiquei eu, por muito tempo ainda, com a minha original bolsa paraguaia até que o desgaste do tempo a consumiu.